domingo, 27 de agosto de 2023

 


Primeira Pessoa do Singular – Haruki Murakami

 

O título do livro “Primeira pessoa do singular” está direta e imediatamente referido à voz narrativa que compõe os oito contos do livro, o “eu” é o pronome oculto e predominante da experiência narrada. O seu paradoxo, entretanto, reside no fato de que esse “eu”, narrador e protagonista dos relatos, singular em suas ações, multiplica-se por momentos e de forma simultânea, em muitos “eus”. O arco que conecta os contos é, portanto, essa primeira pessoa, personagem, protagonista, narrador, autor, vários e um só ao mesmo tempo. Dessa forma, as “obsessões” amplamente conhecidas por nós, leitores de Murakami, ao longo de suas obras, desde “Ouça a canção do vento” até “A morte do comendador”, tecem as tramas dos contos utilizando um mesmo fio condutor: suas paixões mais enraizadas. Estas que gravitam entorno do beisebol, bares noturnos das noites de Tóquio, o jazz, o universo feminino em sua mais vasta profundidade, a solidão implacável, o cotidiano cuja realidade mais rígida é a sua magia.

Porém, pego emprestado o “singular” do título para atribuí-lo ao estilo de Murakami, sem dúvida inigualável. Tendo em vista certos conceitos das teorias clássicas literárias, o estilo de escrita de Murakami extravasa e recusa uma classificação em gêneros literários precedentes. A primeira vista “Primeira pessoa do singular” muito se aproxima à “literatura fantástica” ou ainda ao “realismo mágico” ocidental, mas se difere consideravelmente destes. Em primeira instância, se concebermos como “mundos possíveis” todo e qualquer universo criado na ação literária, desde a mais verossímil autobiografia ao mundo fantástico das fadas e duendes, por exemplo, a “literatura fantástica” e o “realismo mágico” estariam na ruptura – por vezes traumática, em outras nas sutilezas de um traço estético fino - desses polos. Grosso modo, a literatura não lida, portanto, com realidade ou fantasia já que todo relato é uma construção distanciada do mundo real, senão com “mundos possíveis”, com lógicas próprias que se aproximam em menor ou maior grau da mimese da realidade. Na “literatura fantástica” ou no “realismo mágico” há uma desestabilidade nesse “mundo possível” que coloca em xeque a própria fiabilidade das lógicas desse mundo. Cria-se certo desconforto, um assombro, uma estranheza por meio de algum acontecimento extraordinário ou fantástico, cavando uma reflexão nem sempre consciente, uma experiência sensitiva, um deslocamento de realidades que, quando bem executado, suspende o fôlego do leitor. Já em “Primeira pessoa do singular” a transição é permanente, abrupta ou sútil, mas que dilui as fronteiras do real e da fantasia, em um diálogo constante entre as impossibilidades de certos acontecimentos extraordinários e a sensação de que tudo é possível na mais concreta e natural dinâmica do cotidiano. Não há uma ruptura definitiva que provocaria uma desestabilidade das regras de verossimilhança desse mundo, senão uma sobreposição dinâmica, lúdica e simultânea das verossimilhanças desses mesmos mundos. Realidades paralelas e de diferentes dimensões, entretanto, concebidas como uma só e ao mesmo tempo. Esse recurso impacta intensa e estranhamente a leitura, e arriscaria dizer, através de algumas estratégias fundamentais.

Por um lado, o desequilíbrio da realidade ocorre com a introdução de elementos simbólicos que se deslocam em direção a certos paradoxos. Como por exemplo, a imagem que emerge dos versos de um tanka escritos por uma poetisa – amante de uma noite casual da qual o narrador sequer lembra o rosto ou o nome – que, com afã de descansar sua consciência, apoia sua cabeça em um travesseiro de pedra. Ou na percepção de que as lacunas de nosso interior poderiam ser preenchidas na geometria paradoxal de um círculo cujos centros são muitos e a circunferência nenhuma: “É o círculo que nos permite amar com o coração, sentir profunda compaixão, abraçar utopias, encontrar a fé (ou algo próximo a ela). Nesses casos aceitamos o paradoxo do círculo com naturalidade, por formar parte de nós mesmos”. Ou ainda impressos nas ranhuras do LP “Charlie Parker plays bossa nova” jamais gravado e que mesmo assim surge empilhado numa loja de discos usados em uma das principais avenidas de Nova Iorque. Ou na imagem estampada na capa do disco “White the Beatles” abraçado por uma garota que desaparece para sempre no final do corredor de um colégio. Ou no estranho, versátil e simbólico jogo de máscaras que permeia o conto Carnaval o qual esconde de maneira metafórica a feiura da personagem, a esquizofrenia de Schumann e até mesmo a face autoral do próprio Murakami. Ou no relato (aparentemente) autobiográfico sobre o fanatismo do autor pelo time de beisebol Yakult Swallows e o mistério dos cartões telefônicos com as imagens dos jogadores do time Hanshin Tigers que aparecem na casa de sua viúva mãe sem qualquer explicação. Ou ainda na figura de um macaco falante, que apesar de fantástico para os olhos do narrador, relata, paradoxalmente, a mais natural história de desamor já vivida. Ou na enigmática presença de uma mulher, que debruça sobre o balcão de um bar de jazz, detalhes obscuros sobre a vida do narrador sem que este recorde jamais tê-la visto.

Outro recurso utilizado para entrelaçar as distintas dimensões e substâncias das realidades é o eco produzido pelas múltiplas vozes narrativas, em suas diferentes camadas de ficção, em suas diferentes posições de anunciação. É por essa razão, talvez, que Murakami insista em ancorar o narrador a certa flutuação narrativa à deriva de uma realidade que, até nova ordem, deveria ser chamada de verdade. O traço autobiográfico calca a simetria com o real. O tom intimista, as incertezas diante das próprias falhas da memória e outras imperfeiçoes inerentes a qualquer ser humano, bem como a profundidade de detalhes contados com a propriedade de quem as viveu de forma veraz, traz a escrita à superfície das páginas, mimetizando-a com o real. Uma das coisas que provoca a certeza dos fatos narrados, sua verdade, são as frequentes incertezas vividas por quem as narra.  O narrador de “Primeira pessoa do singular” rompe as contenções do autobiográfico e da ficção, um está para potencializar o outro, para causar no leitor o estranhamento próprio daquilo que está suspenso entre essas duas coisas, oscilando de forma permanente e simultânea entre o real e o fantástico: “Tornei a experimentar a mesma sensação de atordoamento da noite anterior, como se realidade e fantasia se cruzassem em algum ponto sem possibilidades de discernir uma da outra”.

As máscaras ou o Carnaval de Murakami

De fato, a interpretação de Carnaval de Rubistien é – por falta de uma metáfora minimamente digna daquelas lançadas mão por Murakami para definir dita obra - primorosa! Poderiam passar cada palavra de todo o léxico português em sequência, translúcidas pela luz da minha tela e ainda assim, por infinita que sejam em sua eterna progressão, seriam insuficientes e estariam ofuscadas pela fina precisão com a qual Murakami traduz para a linguagem escrita a obra de Schumann. Precisei dispor-me a ouvir Carnaval para decifrar - com a mesma exatidão em que o tempo se fragmenta na complexidade de sua cadência rítmica - o que o autor do conto homônimo desafiava, a nós leitores, compreendermos. Pois bem, agora, ouvindo enquanto escrevo, posso finalmente entender de maneira inerte, arrastado pela força de um piano ao mesmo tempo furioso e alegre, lúcido e lúdico – e não é um mero jogo de palavras – a dupla reverberação que compõe Carnaval da qual nos fala o narrador do conto (ou seria este o próprio Murakami).

O conto Carnaval nos fala de uma necessidade imperiosa e inerente ao ser humano. O indivíduo por sua natureza cultural precisa antepor, entre o seu “eu” e a forma como os demais veem esse “eu”, uma máscara. Tonar-se-ia insustentável – e insuportável – mostrar a pele da face sem o véu daquilo pelo qual desejamos que nos reconheçam. Dessa forma a máscara cai, mas também se reafirma nos ritos carnavalescos. O carnaval é, portanto, a festa das máscaras, é por excelência a exaltação da carne e do desejo, mitos e essências se desvelam, revelam-se a loucura e o harmônico, celebra-se o delírio como a máxima expressão do real. A máscara está colada à face durante a liturgia do carnaval, fantasia e realidade se convulsionam numa só manifestação artística. É exatamente disso que trata a obra de Schumann em sua obra prima Carnaval. A peça se infiltra, por meio de numa harmonia confusa de melodia e acordes, entre a máscara e o rosto, entre aquilo que se é e o que o desejo nos faz crer que somos, nesse espaço que não existe, a não ser na arte. Schumann precisava realizar tal operação para ocultar por detrás da máscara a sua esquizofrenia. Murakami faz o mesmo no conto homônimo e, de uma maneira mais extensa ainda, em todo o livro “Primeira pessoa do singular”. 

“Primeira pessoa do singular” é o Carnaval de Murakami. A voz do narrador transita incessantemente entre o caráter mais profundo do autor e a fala libertadora de um personagem (ou deveríamos dizer personagens?) quem narra os contos em primeira pessoa do singular. Compõem os oito contos, portanto, uma narrativa de camadas e matizes diversos que dão cor e textura a uma sequência de máscaras que se intercalam, rompem-se, escondem-se uma nas outras, presas finalmente à face de uma persona que se apresenta genuinamente como o autor da experiência narrada. A máscara, no entanto, se desestabiliza, ameaça cair, e assim por vários instantes permite entrever a face do próprio Murakami. E o que parecia ser a narrativa de uma primeira pessoa do singular, se multiplica, desfarela-se, imprime-se em muitos narradores que, apesar das particularidades de suas gêneses, poderiam ser decerto o mesmo, ou ainda, o mesmo Murakami em cada um dos contos do livro. Afinal, reconhecer-se entre todas as máscaras que escondem o verdadeiro rosto daquilo que essencialmente somos talvez seja o propósito – e, ao mesmo tempo, o terror - de toda uma existência. Tal como nos mostra o último conto que dá o título ao livro: “Quanto mais eu me olhava menos me reconhecia naquela imagem daquele homem que o espelho me mostrava, e no entanto, quem podia ser, senão eu, aquele que me observava, seus olhos fixos nos meus?”[...] “Seja como for, continuei olhando enfrente, perguntando a mim mesmo quem seria aquele que me observava no espelho”.

Para concluir, em “Primeira pessoa do singular”, muitas vezes é o próprio narrador quem provoca a desestabilidade das regras da realidade, seja por falsas memórias, seja pela atmosfera onírica que o atravessa permanentemente, cuja única certeza é a dúvida. Não há, portanto, fronteiras, aliás, não deveria por que havê-las. A escrita de Murakami nos seduz, e envolve a tal ponto as realidades, que a vida mesma e o ato da leitura se dissipam na palma de nossas mãos. A referência autobiográfica e o acontecimento fantástico são um só. Pois na vida, assim como na literatura, a realidade cotidiana é o advento mais mágico que se possa alcançar. No entanto, se ainda houver alguma dúvida de quem é o autor do livro – questão esta que assalta o próprio Murakami - cito um trecho que não resolve o enigma, pelo contrário, deixa em suspenso uma reflexão ainda mais profunda: “Felizmente um conhecido meu com um importante cargo em uma imprensa, ofereceu-me a feliz oportunidade de imprimir, a um preço bastante acessível, quinhentos exemplares modestamente encadernados, embora, isso sim, ordenadamente enumerados e assinados atentamente por mim: Haruki Murakami, Haruki Murakami, Haruki Murakami...”.



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