Não seria descabido iniciar uma resenha sobre o
romance de Nagai Kafu perguntando: Quem é o protagonista de “Histórias da outra
margem”? À primeira vista, a resposta pode parecer óbvia, se a história se
baseia no romance vivido pelo personagem-narrador Tadasu Oe, será este o
protagonista da história que narra. Não obstante, mediante um processo
intrincado de metalinguagem, esse protagonista - de quem pouco se sabe, a não
ser que ele exerce a labor de escritor, ostentando inclusive certo prestígio -
está escrevendo um inacabado manuscrito. Nele, o protagonista de sua história é
um professor que abandona à sorte sua esposa e filhos para viver um antigo amor
com uma garçonete. Desta vez, tudo pareceria apontar ao protagonista da
história dentro da história narrada, ou seja, a esse professor. Existe, no
entanto, a figura de Oyuki. Do outro lado da margem está Oyuki, uma prostituta
de profissão, mas mais do que isso, é a musa que coloca em movimento, não só a
vida do velho escritor, senão aquilo que será talvez o seu último manuscrito. A
certa altura, inclusive Nagai Kafu surge, por meio de uma série de referências
autobiográficas, na narrativa. De essa forma, funde-se na escrita personagens,
narrador, autor, deslocando o foco narrativo de maneira sistemática, mas sem nunca
perder de vista os percursos bem delimitados que levam ao outro lado da margem,
território onde todos eles de alguma maneira se encontram.
Apesar da simplicidade dos recursos de escrita,
a proposta literária de Nagai Kafu traz em si algo de novo para o âmbito
literário do Japão da época. Não tanto pelo estilo que coincide em grande
medida com a escrita tradicional japonesa, lúcida e luminosa, limando excessos
na precisa descrição dos espaços, da natureza e de suas ações climáticas,
deixando à luz somente o véu mais transparente da palavra, mas porque traz ao
proscênio o bairro de Tamanoi. E é talvez esse o ponto que torna “Histórias da
outra margem” uma obra que contribui com uma nova forma de fazer literatura japonesa
nesse século. O protagonista não é o herói, o anti-herói ou a musa. O
verdadeiro protagonista é tudo aquilo que habita a outra margem, o submundo
escuro e sujo de Tóquio, condenado por parte da sociedade tradicional japonesa.
Traz em questão um novo estigma para as mulheres que atendem, através de suas
janelas precárias, o apetite carnal desses homens, num ato que vulgariza a
figura das damas de companhia e as gueixas. O conflito de gerações e a casta moral
avançam e são ofuscados pelas luzes de neon ocidentais. Em “Histórias da outra
margem” o protagonista é em definitiva Tamanoi, deixando de ser apenas o local
geográfico onde o enredo acontece. Pois de repente parece ser o bairro quem
toma de assalto à trama e se impõe para enternecer o leitor.
O movimento, portanto, é contrário. A descrição
do bairro não passa pelo olhar do narrador que traduz as imagens em palavras,
mas são as coordenadas exatas e cruas da paisagem de Tamanoi que cavam no
narrador a sua mais pura impressão. É o espaço físico e real quem dita enfim a escrita,
e este é sem dúvida um procedimento de escrita ocidental, dos finais do século
XIX, emparelhada com os autores do movimento naturalista e que é resgatado por
autores como Nagai Kafu.
Outras referências literárias modernas são
ainda mais evidentes. Por exemplo, a postura errante e contemplativa do escritor
pelas dinâmicas da urbe e sua expressão sobre as coisas mais insignificantes; a
modernidade que abruma a sensibilidade artística desse flâneur. Herança dos dândis,
retratado posteriormente com maestria por Louis Aragon no livro “Camponês de
Paris”, o narrador de “Histórias da outra margem” flana por Tóquio, por sua
margem marginalizada, ele é, em uma palavra, um outsider. Mas diferente dos seus antecessores sobre os bulevares
parisienses, inclusive diferente dos Beats e o “On de Road” de Keruac e até
mesmo diferente do seu conterrâneo Oasamu Dazai em “O declínio de um Homem”, o outsider desta obra, não carrega o martírio
de ser impelido ao estranho, de ser lançado ao lado de fora. Se o personagem de
Dazai executa a própria vida quando atingido o ponto mais profundo de sua
condição de estranho, estrangeiro deste mundo, o mundo de Nagai Kafu flutua, as
suas margens são flutuantes como as ondulações de um rio. A intensidade se
dissolve na chuva fina. Desta forma, colocar-se do lado de fora o seduz,
atravessa o seu espírito inquisidor, não o dilacera, antes é desejado, pois ali
está seu ponto de fuga e sua fonte de prazer - Oyuki.
Assim, vestir-se com uma calça puída, tirar o
chapéu e calçar tamancos velhos, fazem do personagem um novo personagem. Este se
desdobra no professor, protagonista do manuscrito inacabado e que é também o reflexo
do próprio Nagai Kafu. Encontram-se todos esses atores com o vento de outono
que circula pelas ruas fazendo soar as cortinas de bambus e os pequenos sinos das
casas, do lado de lá da margem. Circulam vento, chuva e melancolia pelas flâmulas
vermelhas do templo, soprando um resto de vida no peito desses amantes
separados por uma nova moral, uma moral moderna talvez. E é na íntima relação disso
tudo, no encontro disso tudo com o bairro Tamanoi, que se compõem a história de
“Histórias da outra margem”.
Qualquer resenha sobre essa obra estaria incompleta.
Aliás, me perguntei se deveria escrevê-la correndo o risco de minimizar em
palavras ordinárias as palavras tão precisas e bem garimpadas por Nagai Kafu.
Porém, o impulso e o deslumbramento arrebatadores causados ao fim da leitura foram
muito mais fortes, pelo qual silenciar-me diante de tamanha beleza seria quase
uma violência. Portanto, “Histórias da outra margem” não deveria ser lido como
um livro, senão como um lugar que nos introduz às margens escuras de uma
realidade alheia e sedutora.


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