miércoles, 21 de junio de 2023

 

Mar inquieto - Mishima

A narrativa de Mishima é cinematográfica. Sua escrita, sob a luz mais clara da disciplina apolínea, transcende a corrente clássica, pois projeta as ações dramáticas de uma maneira sistemática, quadro a quadro, como os direcionamentos e aproximações de uma lente focal próprios de um filme contemporâneo. A obra começa apresentando a ilha vista de cima, a tomada área se aproxima do alto da narrativa feito drone - recurso inimaginável para o autor daquela década de 70.  E assim a vertigem das cenas é constante e seletiva, bem como a regulação do seu ritmo e os detalhes minuciosos das imagens criadas e escritas. Ou dito de uma maneira mais precisa, são as imagens das paisagens e os fenômenos da natureza que em definitiva criam a escrita de “Mar inquieto”. A topografia, as temperaturas e suas variações estacionais, as temporadas da pesca dos mais variados seres marinhos, as violentas atividades do vento e da água castigando as rochas inabaláveis - fruto da fúria implacável de um mar inquieto- acompanham, por vezes se confundem, às emoções essencialmente humanas.

À primeira vista, a trama de “Mar inquieto” é relativamente simples. Aborda um conflito clássico, uma paixão entre dois jovens impossível de ser consumada em virtude de um impedimento de uma moral maior. Uma intriga, um boato, ou um mal entendido põe os amantes em um impasse, força uma separação que somente ao final da obra é resolvido. No entanto, no reverso desse entreamado existe uma profundidade turva, mas profunda enfim. E ela poderia ser vista com maior clareza se iluminássemos - como os holofotes de uma obra teatral - a ação dramática, os conflitos individuais e a retidão ética de cada um dos personagens. E é justamente isso que Mishima faz. Por meio de um recurso de narrativa em que os focos da descrição se movem junto aos personagens, lendo inclusive seus pensamentos e intenções, o autor compõe personalidades complexas, colocando-os à prova diante da dicotômica condição de uma ética universal e uma moral perversa. Portanto, parte da compreensão da obra é decifrar a complexidade ética de cada personagem através de suas mais severas decisões.  

Os protagonistas de “Mar inquieto” são Hatsue e Shinji. Dois jovens virtuosos, fortes e belos, ao melhor estilo dos heróis gregos. E como nas epopeias gregas, a sua virtude emerge de uma prova moral pela qual, a sua ação para resolver o conflito, revela a essência do herói. E por mais que o protagonismo de Hatsue esteja limitado a um foco narrativo que pouco a acompanha durante a história, fazendo-a parecer inclusive uma personagem escassa de conflitos, suas ações são contundentes. A sua nobreza comove. Prova disto pode ser visto na passagem em que Hatsue dá à mãe de Shinji o prêmio que ganhara numa disputa com outras mergulhadoras – entre elas a própria mãe de Shinji – consagrando assim, diante das mulheres presentes, a sua índole imaculada. Da mesma forma Shinji delimita, por meio da nobreza de suas ações, seu campo ético. Tal como ocorre na cena no interior de uma torre abandonada, azotada por um interminável dilúvio, quando diante da possível perda da virgindade de ambos - o que significaria uma contraversão moral pautada na necessidade do casamento antes do ato sexual - Shinji freia a fúria de seu desejo com uma correção de caráter que o antecede “... pareceu-lhe ter atingido a parte mais profunda do ser de Hatsue, onde radicava sua moral, e não insistiu mais”. Cada um dos personagens da obra carrega em seu âmago um caráter cujo valor é evidenciado, não só pela reação diante das intrincadas encruzilhadas da trama, mas também pelas sutilezas de uma escrita de um narrador onipresente, quem deixa transparecer pensamentos e sensações desses personagens numa dosagem precisa e sistemática.

Além da importância dos personagens que dão profundidade e verossimilhança à obra, outro aspecto que assume um papel de protagonismo, tratado com o mesmo cuidado de detalhes, é a ilha de Utajima. Quase toda a história se desenvolve nos cinco quilômetros de extensão dessa ilha. A minuciosa descrição dos elementos naturais e suas ações climáticas, o cenário de uma beleza selvagem, atinge uma dimensão tão real na escrita de Mishima que é difícil imaginar que o autor não esteja, durante o ato da escrita, observando in locus todo esse cenário. É como se o autor estivesse com seu cavalete apoiado no ponto mais alto da ilha, ou seja, no topo do farol, pintando contemplativamente uma paisagem impressionista. O que nos leva a perguntar: é realmente possível que Mishima estivesse escrevendo “Mar inquieto” no interior de uma habitação qualquer de Tóquio? E se assim fosse, ele teria feito toda a composição exata da paisagem apelando somente à memória? Ou terá ele inventado certos espaços imaginários preenchendo lacunas da lembrança com elementos e entidades imaginadas? De qualquer forma, a precisão com a qual ele descreve a atmosfera da ilha, as coordenadas cartesianas exatas onde se misturam os fenômenos naturais com a suas respectivas percepções sensoriais, impressiona.

Da mesma forma a questão temporal é trabalhada com maestria por Mishima. Poderíamos dizer que o tempo se move em três dimensões que se articulam entre si, mas também com o espaço. Em primeiro lugar, a dimensão temporal marcada pelas condições naturais, resultado dos fenômenos provocados pelas estações do ano. Essa é uma concepção do tempo de primeira ordem, pois determina as ações climáticas que se abatem sobre a ilha, define a lida da pesca e outras atividades sociais, pois estas dependem do clima e das estações, como a agricultura, incidindo diretamente nas dinâmicas da população local. Outro eixo temporal é justamente a sensação da falta dele, ou seja, a iminência de uma atemporalidade. Há uma espécie de flutuação que indetermina o período histórico em que a obra ocorre, absorvendo o período a certo vazio. Apenas na página 22, quando se dá a conhecer a causa da morte do pai de Shinji – sua embarcação fora atingida por um avião bombardeiro- torna-se possível deduzir o contexto de pós-guerra. É como se a linha temporal da ilha avançasse sobre sua própria história e formasse assim sua peculiar construção cultural, sem conexão com os acontecimentos do mundo exterior. No decorrer da trama certos aspectos do contexto permitem entrever o período da década de 60, início da prosperidade japonesa, as novidades modernas e sua influência do ocidente, tal como o cinema de faroeste, os bondes e outras coisas alheias à ilha. Mas as novidades de uma Tóquio supramoderna só servem para demarcar uma vez mais a fronteira com o mundo externo porque a ilha se desloca em seu próprio tempo e está simultaneamente situada em seu próprio espaço. Somente os barcos conectam esses tempos, navegando sobre a lacunas inundadas pelo Oceano Pacífico. E por último, no que diz respeito às dinâmicas do tempo, destaca-se o fluxo da narrativa, o seu ritmo. Mishima que ao longo dos primeiros capítulos se detém sem pressa nos pormenores de uma descrição excessivamente detalhada, acelera seu ritmo à conveniência do relato. Tal como ocorre na épica cena em que Shinji, a fim de executar a missão suicida de amarrar o barco a uma boia, atira-se da proa para lutar contra a fúria de um mar tempestuoso, onde a invisibilidade da noite e a força das águas causam calafrios no leitor. Em meio a um esforço corporal exaustivo do herói o ritmo da narrativa atinge um frenesi comparado às lutas marciais japonesas. De fato, no conto “Os sabres”, Mishima utiliza um recurso de narrativa similar. A aceleração vertiginosa e repentina das ações dos personagens em “Os sables” recria uma atmosfera, ao mesmo tempo veloz e brutal, de um combate de kendô.

Por tudo isso, a narrativa de Mishima é também emocionante. Palpita uma emoção ao longo do livro que, além de comover-nos, dá vida aos personagens. Da profundidade de cada um deles, agita-se algo semelhante ao entorno natural da ilha, ajudando-nos a entender seu caráter e suas virtudes - ou a falta deles. Dessa forma, Mishima entrelaça o rigor técnico de uma escrita clássica com a potência de uma emoção lírica. Isso porque a construção de sua narrativa utiliza a onipotência de uma terceira pessoa para atravessar precisamente onde a lente de uma câmara – como limitação da linguagem cinematográfica que só revela o que a lente vê- não teria alcance, ou seja, no interior das emoções, suas percepções mais íntimas e a sensibilidade reativa de seus personagens. Uma percepção que surpreende, por vezes, até mesmo quem a sente, tal como acontece com Shinji: “Ter consciência de que em seu interior aconteciam coisas que nem sequer ele mesmo havia suspeitado era um golpe ao seu orgulho e sua raiva crescente fez que suas faces se esquentassem ainda mais”. Dessa forma, o externo e o interno se tencionam, reafirmam-se, definem suas fronteiras, não só para estabelecer a geografia da ilha, mas também na relação que cada um dos seus personagens tem entre suas emoções e seu entorno: “Estúpida borboleta! Se deseja partir, o único que deves fazer é pousar no navio e viajar como uma senhora”, diz a mãe de Shinji ao observar uma borboleta que voa a esmo sobre a superfície plana do mar, enquanto ela mesma se pergunta - nunca de uma maneira direta - porque ela não abandona a ilha de Utajima. 

O certo é que Mishima está para a literatura japonesa como o está Shakespeare para a literatura inglesa ou Cervantes para a literatura espanhola. Poderão discordar - com certa razão - aqueles que atribuem a Kawabata ou a Sozeki dito merecimento. Porém em nenhum outro autor vê-se tão latente a execução estética de “A ética do samurai moderno”. Em “Mar inquieto”, Mishima subverte a visão romântica do suicídio de Romeu e Julieta. Em sua obra o suicídio não conduz à solução definitiva para um amor sem retorno, mas é na verdade o caminho mais justo que leva à vida. A escolha que Shinji faz ao jogar-se ao mar e lutar contra a morte, sabendo que seria uma batalha decerto perdida – e ainda assim vencer -, é a única razão ética de o porquê devemos continuar com vida.



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