Mar inquieto - Mishima
A narrativa de Mishima é cinematográfica. Sua escrita,
sob a luz mais clara da disciplina apolínea, transcende a corrente clássica,
pois projeta as ações dramáticas de uma maneira sistemática, quadro a quadro, como
os direcionamentos e aproximações de uma lente focal próprios de um filme contemporâneo.
A obra começa apresentando a ilha vista de cima, a tomada área se aproxima do
alto da narrativa feito drone - recurso inimaginável para o autor daquela
década de 70. E assim a vertigem das
cenas é constante e seletiva, bem como a regulação do seu ritmo e os detalhes
minuciosos das imagens criadas e escritas. Ou dito de uma maneira mais precisa,
são as imagens das paisagens e os fenômenos da natureza que em definitiva criam
a escrita de “Mar inquieto”. A topografia, as temperaturas e suas variações estacionais,
as temporadas da pesca dos mais variados seres marinhos, as violentas atividades
do vento e da água castigando as rochas inabaláveis - fruto da fúria implacável
de um mar inquieto- acompanham, por vezes se confundem, às emoções
essencialmente humanas.
À primeira vista, a trama de “Mar inquieto” é
relativamente simples. Aborda um conflito clássico, uma paixão entre dois
jovens impossível de ser consumada em virtude de um impedimento de uma moral
maior. Uma intriga, um boato, ou um mal entendido põe os amantes em um impasse,
força uma separação que somente ao final da obra é resolvido. No entanto, no reverso
desse entreamado existe uma profundidade turva, mas profunda enfim. E ela
poderia ser vista com maior clareza se iluminássemos - como os holofotes de uma
obra teatral - a ação dramática, os conflitos individuais e a retidão ética de
cada um dos personagens. E é justamente isso que Mishima faz. Por meio de um recurso
de narrativa em que os focos da descrição se movem junto aos personagens, lendo
inclusive seus pensamentos e intenções, o autor compõe personalidades
complexas, colocando-os à prova diante da dicotômica condição de uma ética
universal e uma moral perversa. Portanto, parte da compreensão da obra é
decifrar a complexidade ética de cada personagem através de suas mais severas
decisões.
Os protagonistas de “Mar inquieto” são Hatsue e
Shinji. Dois jovens virtuosos, fortes e belos, ao melhor estilo dos heróis
gregos. E como nas epopeias gregas, a sua virtude emerge de uma prova moral
pela qual, a sua ação para resolver o conflito, revela a essência do herói. E
por mais que o protagonismo de Hatsue esteja limitado a um foco narrativo que
pouco a acompanha durante a história, fazendo-a parecer inclusive uma
personagem escassa de conflitos, suas ações são contundentes. A sua nobreza comove.
Prova disto pode ser visto na passagem em que Hatsue dá à mãe de Shinji o
prêmio que ganhara numa disputa com outras mergulhadoras – entre elas a própria
mãe de Shinji – consagrando assim, diante das mulheres presentes, a sua índole
imaculada. Da mesma forma Shinji delimita, por meio da nobreza de suas ações,
seu campo ético. Tal como ocorre na cena no interior de uma torre abandonada, azotada
por um interminável dilúvio, quando diante da possível perda da virgindade de
ambos - o que significaria uma contraversão moral pautada na necessidade do
casamento antes do ato sexual - Shinji freia a fúria de seu desejo com uma
correção de caráter que o antecede “... pareceu-lhe ter atingido a parte mais
profunda do ser de Hatsue, onde radicava sua moral, e não insistiu mais”. Cada um
dos personagens da obra carrega em seu âmago um caráter cujo valor é evidenciado,
não só pela reação diante das intrincadas encruzilhadas da trama, mas também
pelas sutilezas de uma escrita de um narrador onipresente, quem deixa
transparecer pensamentos e sensações desses personagens numa dosagem precisa e sistemática.
Além da importância dos personagens que dão
profundidade e verossimilhança à obra, outro aspecto que assume um papel de
protagonismo, tratado com o mesmo cuidado de detalhes, é a ilha de Utajima.
Quase toda a história se desenvolve nos cinco quilômetros de extensão dessa ilha.
A minuciosa descrição dos elementos naturais e suas ações climáticas, o cenário
de uma beleza selvagem, atinge uma dimensão tão real na escrita de Mishima que
é difícil imaginar que o autor não esteja, durante o ato da escrita, observando
in locus todo esse cenário. É como se
o autor estivesse com seu cavalete apoiado no ponto mais alto da ilha, ou seja,
no topo do farol, pintando contemplativamente uma paisagem impressionista. O
que nos leva a perguntar: é realmente possível que Mishima estivesse escrevendo
“Mar inquieto” no interior de uma habitação qualquer de Tóquio? E se assim
fosse, ele teria feito toda a composição exata da paisagem apelando somente à
memória? Ou terá ele inventado certos espaços imaginários preenchendo lacunas
da lembrança com elementos e entidades imaginadas? De qualquer forma, a
precisão com a qual ele descreve a atmosfera da ilha, as coordenadas
cartesianas exatas onde se misturam os fenômenos naturais com a suas
respectivas percepções sensoriais, impressiona.
Da mesma forma a questão temporal é trabalhada
com maestria por Mishima. Poderíamos dizer que o tempo se move em três dimensões
que se articulam entre si, mas também com o espaço. Em primeiro lugar, a
dimensão temporal marcada pelas condições naturais, resultado dos fenômenos provocados
pelas estações do ano. Essa é uma concepção do tempo de primeira ordem, pois
determina as ações climáticas que se abatem sobre a ilha, define a lida da pesca
e outras atividades sociais, pois estas dependem do clima e das estações, como a
agricultura, incidindo diretamente nas dinâmicas da população local. Outro eixo
temporal é justamente a sensação da falta dele, ou seja, a iminência de uma
atemporalidade. Há uma espécie de flutuação que indetermina o período histórico
em que a obra ocorre, absorvendo o período a certo vazio. Apenas na página 22,
quando se dá a conhecer a causa da morte do pai de Shinji – sua embarcação fora
atingida por um avião bombardeiro- torna-se possível deduzir o contexto de
pós-guerra. É como se a linha temporal da ilha avançasse sobre sua própria
história e formasse assim sua peculiar construção cultural, sem conexão com os
acontecimentos do mundo exterior. No decorrer da trama certos aspectos do
contexto permitem entrever o período da década de 60, início da prosperidade
japonesa, as novidades modernas e sua influência do ocidente, tal como o cinema
de faroeste, os bondes e outras coisas alheias à ilha. Mas as novidades de uma
Tóquio supramoderna só servem para demarcar
uma vez mais a fronteira com o mundo externo porque a ilha se desloca em seu
próprio tempo e está simultaneamente situada em seu próprio espaço. Somente os
barcos conectam esses tempos, navegando sobre a lacunas inundadas pelo Oceano Pacífico.
E por último, no que diz respeito às dinâmicas do tempo, destaca-se o fluxo da
narrativa, o seu ritmo. Mishima que ao longo dos primeiros capítulos se detém
sem pressa nos pormenores de uma descrição excessivamente detalhada, acelera
seu ritmo à conveniência do relato. Tal como ocorre na épica cena em que Shinji,
a fim de executar a missão suicida de amarrar o barco a uma boia, atira-se da
proa para lutar contra a fúria de um mar tempestuoso, onde a invisibilidade da
noite e a força das águas causam calafrios no leitor. Em meio a um esforço corporal
exaustivo do herói o ritmo da narrativa atinge um frenesi comparado às lutas marciais
japonesas. De fato, no conto “Os sabres”, Mishima utiliza um recurso de
narrativa similar. A aceleração vertiginosa e repentina das ações dos
personagens em “Os sables” recria uma atmosfera, ao mesmo tempo veloz e brutal,
de um combate de kendô.
Por tudo isso, a narrativa de Mishima é também
emocionante. Palpita uma emoção ao longo do livro que, além de comover-nos, dá
vida aos personagens. Da profundidade de cada um deles, agita-se algo
semelhante ao entorno natural da ilha, ajudando-nos a entender seu caráter e
suas virtudes - ou a falta deles. Dessa forma, Mishima entrelaça o rigor
técnico de uma escrita clássica com a potência de uma emoção lírica. Isso
porque a construção de sua narrativa utiliza a onipotência de uma terceira
pessoa para atravessar precisamente onde a lente de uma câmara – como limitação
da linguagem cinematográfica que só revela o que a lente vê- não teria alcance,
ou seja, no interior das emoções, suas percepções mais íntimas e a
sensibilidade reativa de seus personagens. Uma percepção que surpreende, por vezes,
até mesmo quem a sente, tal como acontece com Shinji: “Ter consciência de que
em seu interior aconteciam coisas que nem sequer ele mesmo havia suspeitado era
um golpe ao seu orgulho e sua raiva crescente fez que suas faces se esquentassem
ainda mais”. Dessa forma, o externo e o interno se tencionam, reafirmam-se,
definem suas fronteiras, não só para estabelecer a geografia da ilha, mas
também na relação que cada um dos seus personagens tem entre suas emoções e seu
entorno: “Estúpida borboleta! Se deseja partir, o único que deves fazer é
pousar no navio e viajar como uma senhora”, diz a mãe de Shinji ao observar uma
borboleta que voa a esmo sobre a superfície plana do mar, enquanto ela mesma se
pergunta - nunca de uma maneira direta - porque ela não abandona a ilha de
Utajima.
O certo é que Mishima está para a literatura
japonesa como o está Shakespeare para a literatura inglesa ou Cervantes para a
literatura espanhola. Poderão discordar - com certa razão - aqueles que
atribuem a Kawabata ou a Sozeki dito merecimento. Porém em nenhum outro autor vê-se
tão latente a execução estética de “A ética do samurai moderno”. Em “Mar
inquieto”, Mishima subverte a visão romântica do suicídio de Romeu e Julieta.
Em sua obra o suicídio não conduz à solução definitiva para um amor sem
retorno, mas é na verdade o caminho mais justo que leva à vida. A escolha que
Shinji faz ao jogar-se ao mar e lutar contra a morte, sabendo que seria uma
batalha decerto perdida – e ainda assim vencer -, é a única razão ética de o
porquê devemos continuar com vida.

