martes, 28 de marzo de 2023

Sul da fronteira, oeste do Sol - Haruki Murakami

Letras Literárias Japonesas - Podcast 


Sul da fronteira, oeste do Sol – Haruki Murakami

O livro “Sul da fronteira, oeste do Sol” é, antes de qualquer coisa, uma história de amor. Não espere, entretanto, derreter-se de ternura (poucas são as vezes que isso acontece), antes nos derretemos por vários momentos, de um calor que sobe pelas entranhas, provocado por descrições ardentes. Também não espere um final feliz ou trágico, é do estilo de Murakami não apelar a finais para encerrar uma obra. Outras questões atravessam a obra. De suas profundidades nascem conflitos próprios do ser humano. De suas alturas vêm ao proscênio a luz do jazz, a chuva, toques na superfície mais alta da pele, Tóquio, dias vazios, pessoas esvaziadas, solidões vazias, irremediavelmente vazias.  Mas, repito, trata-se de uma história de amor.

Hajime é o protagonista do livro. E é também quem narra a sua história. Uma história que começa a ser contada na sequência cronológica e linear dos acontecimentos. Avança lenta, perdendo-se em detalhes excessivamente descritivos, na planície de um enredo pouco conflitivo e através de ações moderadas, cautelosas, diria. Essa primeira parte do livro, Hajime narra de forma singela, como aos 12 anos trava uma amizade estreita com Shimamoto, primeiro (e talvez único) amor de sua vida. A linha argumentativa ao longo da trama se desdobra nos encontros e desencontros de Hajime e Shimamoto ao longo dos mais de 20 anos em que eles se (re)conhecem, se unem, se fundem e se perdem. Cíclica e mutuamente, em distintas circunstâncias, eles se perdem. Escapam de suas mãos, como raios do Sol, as fugazes oportunidades. Nas partes seguintes, outros amores se erguem, a história se expande, fragmenta-se o tempo, acelerara-se o ritmo e a trama se ajusta. Hajime tem uma primeira namorada na primeira fase de sua vida adulta, Izumi. E mais tarde, aos 30 anos, se casa com Yukiko, tem duas filhas e um sogro corrupto que vem de quebra. Contudo, ao longo da vida de Hajime, a lembrança de Shimamoto invade o momento da fala. Nos instantes de encontro, a sua presença física o atravessa e o dilacera, permanecendo por longos períodos na memória de seu corpo. Paralelamente, o narrador, assim como o próprio Murakami antes de ser escritor, abre um próspero e intimista bar de jazz.

Daqui em diante convido à leitura do livro, o resto do que se possa dizer sobre a história é mero spoiler. E eu não posso me atrever a sabotar, de maneira irresponsável, o curso e as reviravoltas da linha narrativa do livro, porque mais importante do que a cadeia de instantes e acontecimento que amarram a trama, está na superfície do texto a escrita fina e elegante de Murakami. E estão implícitas em suas entrelinhas questões profundas demais, que levam a reflexões igualmente profundas. Talvez algo disso possa arriscar e trazer à tona.   

“Sul da fronteira...” é sim uma cativante história de amor, mas não limita seus conflitos a essa fronteira literária. Poderia ser entendida inclusive como uma parábola niilista da fatídica condição do homem em sua peregrinação pelo planeta. E, poderíamos dizer ainda que o título da obra delimita algumas de suas principais alegorias. Por um lado o “Sul da fronteira”, emprestado do nome de uma música de Nat King Cole representa o lugar concreto, um destino definido, um amor preciso e carnal, posto que a canção fala, nada mais e nada menos, do amor por uma mulher que ele quer encontrar no sul da fronteira com os Estados Unidos (México). Por outro lado, o “Oeste do Sol” simboliza a caminhada incansável do homem pela busca de um fim, um sentido luminoso para sua existência. Segundo conta Yukiko, cansados de uma rotina repetitiva e tediosa que se estende por dias intermináveis, principalmente porque as noites nunca chegam, alguns homens e mulheres da Sibéria decidem caminhar sem propósito ao oeste do Sol, perseguindo uma luz infinda, mas a qual não se pode alcançar jamais. Uma luz solar eternamente presente e inatingível ao mesmo tempo. Trata-se, portanto, de uma alegoria sobre a caminhada do ser humano pelas vias iniludíveis e jamais traçadas de sua existência neste mundo, através do qual, em seu total despropósito de sentido, encerra em si o real sentido da vida, pois é, finalmente, graças a essa incansável busca que nos nutrimos de forças para atingir tudo aquilo que nos move. 

Murakami constrói então, a partir da síntese entre o “Sul da fronteira” (como coisa real que cessa) e “o oeste do Sol” (como a busca sem fim do inatingível), o principal argumento de sua obra. Assim, partir a outro lugar com o fim de recomeçar um novo ciclo - dando por morto o vivido - reinventar-se, tonar-se outro, surge refletido na ação de Hajime por diversos momentos no livro. Pode ser visto ainda materializado na passagem em que o cadáver do filho de Shimamoto, um bebê com apenas um dia de vida, tem suas cinzas espalhadas na correnteza de um rio para morrer no mar, renascer ao céu e morrer novamente no mar caindo do alto de uma nuvem em gotas de chuva: “As gotas de chuva batiam mudas na superfície da água, sem que nem mesmo os peixes a percebessem[1]”. Está, da mesma forma, na imagem da águia calva que para acasalar se alimenta de arte e de amanhãs, enquanto que  o abutre se alimenta de cadáveres. Ensina-nos, enfim, que o tempo avança impiedoso e toda oportunidade perdida é uma oportunidade morta, mas que sem prejuízo disso, retorna. Hajime deixa, por mais de uma vez escapar literalmente de suas mãos Shimamoto. O eterno retorno em si é, ao mesmo tempo, a perda sistemática de algo que não retorna jamais.

Para finalizar, retomo as palavras com as quais Fernando Ferrone deu inicio ao encontro que tivemos no círculo de leitura “Conversa com Rita”: “É o livro ‘Sul da Fronteira, oeste do Sol’ um bom livro para entrarmos no universo de Murakami?”. Pergunta certamente retórica cuja resposta pareceria ser óbvia: “sim”.  “Sul da Fronteira, oeste do Sol” é talvez a obra que melhor configura o universo de Murakami, é Murakami por excelência. Quase todas as suas “obsessões” estão presentes: a natação como fuga frenética das angústias da vida; a música cujos interstícios modulam a atmosfera da obra; uma mulher que desaparece; as luzes, os sons, os aromas, enfim, as sinestesias próprias de um bar de Jazz; personagens misteriosos; finais abertos. Ao mesmo tempo, um estilo de escrita que muito lembra a estética realista dos finais do século XIX. Aliás, na passagem onde Hajime escuta South of the Border a sós com Shimamoto, em seus precoces doze anos, descrevendo minuciosamente os movimentos sensuais, mas também distraídos dela, lembra, e muito - salvando é claro, as particularidades do período, o território vinculante e as marcas estilísticas - “A missa do galo” de Machado de Assis. Em uma leitura comparada entre as duas obras percebe-se a minuciosa descrição das ações, a sensualidade em contato com a pureza e o despertar de uma consciência erótica. Quanto ao estilo realista da escrita, talvez a maior diferença entre ambos seja que Murakami utiliza recursos linguísticos e imagens que ultrapassam as ações e os objetos que estão na cena para compor a mimeses com o real, ora porque são imateriais ora porque são sensações internas e subjetivas: “Contemplei distraidamente como seus dedos desentortavam devagar a trama quadriculada de sua saia. Havia algo de misterioso nesse gesto. Como se da ponta de seus dedos brotassem uns fios transparentes que fossem tecendo um novo tempo. [...] Shimamoto ainda estava movendo os dedos por cima da saia. E senti uma dor doce, quase imperceptível, nas entranhas[2]”.

Esse estilo realista do autor (me atreveria a chamar inclusive de hiper-realista essa que é uma característica de autores japoneses das últimas décadas), não está somente nas cores de uma escrita que valoriza o detalhe e a precisão de suas figuras de linguagem para dar consistência a uma descrição que se aproxima milimetricamente do real, mas se instala de maneira cirúrgica no espaço onde o conflito realmente refaz a vida, no interior da cabeça de Hajime. Dessa forma, realidade narrada e experiência vivida se entrelaçam e se tencionam no interior de seu pensamento ao ponto dele mesmo já não distinguir as fronteiras do real e do imaginário. A fiabilidade do narrador está decerto em desiquilíbrio, e nós, leitores, estamos à mercê de suas próprias hesitações.

Seriam diversas as sentenças que poderíamos retirar do livro para ilustrar e dar base às impressões (certamente incompletas e imprecisas) que quis aqui registrar. Há, no entanto, uma passagem que se repete, reverbera com força e define o argumento primordial do livro: “Há muitas maneiras de viver. Há muitas maneiras de morrer. Mas isso não tem nenhuma importância. No fim, somente resta o deserto.” É um livro que dispensa mais comentários, o seu encanto está na particularidade e impressão de cada olhar e por tal precisa ser lido.



[1] Tradução minha.

[2] Tradução minha.



miércoles, 22 de marzo de 2023

Histórias da outra margem – Nagai Kafu


 

Não seria descabido iniciar uma resenha sobre o romance de Nagai Kafu perguntando: Quem é o protagonista de “Histórias da outra margem”? À primeira vista, a resposta pode parecer óbvia, se a história se baseia no romance vivido pelo personagem-narrador Tadasu Oe, será este o protagonista da história que narra. Não obstante, mediante um processo intrincado de metalinguagem, esse protagonista - de quem pouco se sabe, a não ser que ele exerce a labor de escritor, ostentando inclusive certo prestígio - está escrevendo um inacabado manuscrito. Nele, o protagonista de sua história é um professor que abandona à sorte sua esposa e filhos para viver um antigo amor com uma garçonete. Desta vez, tudo pareceria apontar ao protagonista da história dentro da história narrada, ou seja, a esse professor. Existe, no entanto, a figura de Oyuki. Do outro lado da margem está Oyuki, uma prostituta de profissão, mas mais do que isso, é a musa que coloca em movimento, não só a vida do velho escritor, senão aquilo que será talvez o seu último manuscrito. A certa altura, inclusive Nagai Kafu surge, por meio de uma série de referências autobiográficas, na narrativa. De essa forma, funde-se na escrita personagens, narrador, autor, deslocando o foco narrativo de maneira sistemática, mas sem nunca perder de vista os percursos bem delimitados que levam ao outro lado da margem, território onde todos eles de alguma maneira se encontram.

Apesar da simplicidade dos recursos de escrita, a proposta literária de Nagai Kafu traz em si algo de novo para o âmbito literário do Japão da época. Não tanto pelo estilo que coincide em grande medida com a escrita tradicional japonesa, lúcida e luminosa, limando excessos na precisa descrição dos espaços, da natureza e de suas ações climáticas, deixando à luz somente o véu mais transparente da palavra, mas porque traz ao proscênio o bairro de Tamanoi. E é talvez esse o ponto que torna “Histórias da outra margem” uma obra que contribui com uma nova forma de fazer literatura japonesa nesse século. O protagonista não é o herói, o anti-herói ou a musa. O verdadeiro protagonista é tudo aquilo que habita a outra margem, o submundo escuro e sujo de Tóquio, condenado por parte da sociedade tradicional japonesa. Traz em questão um novo estigma para as mulheres que atendem, através de suas janelas precárias, o apetite carnal desses homens, num ato que vulgariza a figura das damas de companhia e as gueixas. O conflito de gerações e a casta moral avançam e são ofuscados pelas luzes de neon ocidentais. Em “Histórias da outra margem” o protagonista é em definitiva Tamanoi, deixando de ser apenas o local geográfico onde o enredo acontece. Pois de repente parece ser o bairro quem toma de assalto à trama e se impõe para enternecer o leitor.

O movimento, portanto, é contrário. A descrição do bairro não passa pelo olhar do narrador que traduz as imagens em palavras, mas são as coordenadas exatas e cruas da paisagem de Tamanoi que cavam no narrador a sua mais pura impressão. É o espaço físico e real quem dita enfim a escrita, e este é sem dúvida um procedimento de escrita ocidental, dos finais do século XIX, emparelhada com os autores do movimento naturalista e que é resgatado por autores como Nagai Kafu.

Outras referências literárias modernas são ainda mais evidentes. Por exemplo, a postura errante e contemplativa do escritor pelas dinâmicas da urbe e sua expressão sobre as coisas mais insignificantes; a modernidade que abruma a sensibilidade artística desse flâneur. Herança dos dândis, retratado posteriormente com maestria por Louis Aragon no livro “Camponês de Paris”, o narrador de “Histórias da outra margem” flana por Tóquio, por sua margem marginalizada, ele é, em uma palavra, um outsider. Mas diferente dos seus antecessores sobre os bulevares parisienses, inclusive diferente dos Beats e o “On de Road” de Keruac e até mesmo diferente do seu conterrâneo Oasamu Dazai em “O declínio de um Homem”, o outsider desta obra, não carrega o martírio de ser impelido ao estranho, de ser lançado ao lado de fora. Se o personagem de Dazai executa a própria vida quando atingido o ponto mais profundo de sua condição de estranho, estrangeiro deste mundo, o mundo de Nagai Kafu flutua, as suas margens são flutuantes como as ondulações de um rio. A intensidade se dissolve na chuva fina. Desta forma, colocar-se do lado de fora o seduz, atravessa o seu espírito inquisidor, não o dilacera, antes é desejado, pois ali está seu ponto de fuga e sua fonte de prazer - Oyuki.

Assim, vestir-se com uma calça puída, tirar o chapéu e calçar tamancos velhos, fazem do personagem um novo personagem. Este se desdobra no professor, protagonista do manuscrito inacabado e que é também o reflexo do próprio Nagai Kafu. Encontram-se todos esses atores com o vento de outono que circula pelas ruas fazendo soar as cortinas de bambus e os pequenos sinos das casas, do lado de lá da margem. Circulam vento, chuva e melancolia pelas flâmulas vermelhas do templo, soprando um resto de vida no peito desses amantes separados por uma nova moral, uma moral moderna talvez. E é na íntima relação disso tudo, no encontro disso tudo com o bairro Tamanoi, que se compõem a história de “Histórias da outra margem”.

Qualquer resenha sobre essa obra estaria incompleta. Aliás, me perguntei se deveria escrevê-la correndo o risco de minimizar em palavras ordinárias as palavras tão precisas e bem garimpadas por Nagai Kafu. Porém, o impulso e o deslumbramento arrebatadores causados ao fim da leitura foram muito mais fortes, pelo qual silenciar-me diante de tamanha beleza seria quase uma violência. Portanto, “Histórias da outra margem” não deveria ser lido como um livro, senão como um lugar que nos introduz às margens escuras de uma realidade alheia e sedutora.



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