Letras Literárias Japonesas - Podcast
Sul da fronteira, oeste do Sol – Haruki Murakami
O livro “Sul da fronteira, oeste do Sol” é,
antes de qualquer coisa, uma história de amor. Não espere, entretanto, derreter-se
de ternura (poucas são as vezes que isso acontece), antes nos derretemos por vários
momentos, de um calor que sobe pelas entranhas, provocado por descrições
ardentes. Também não espere um final feliz ou trágico, é do estilo de Murakami
não apelar a finais para encerrar uma obra. Outras questões atravessam a obra. De
suas profundidades nascem conflitos próprios do ser humano. De suas alturas vêm
ao proscênio a luz do jazz, a chuva, toques na superfície mais alta da pele, Tóquio,
dias vazios, pessoas esvaziadas, solidões vazias, irremediavelmente vazias. Mas, repito, trata-se de uma história de amor.
Hajime é o protagonista do livro. E é também
quem narra a sua história. Uma história que começa a ser contada na sequência
cronológica e linear dos acontecimentos. Avança lenta, perdendo-se em detalhes
excessivamente descritivos, na planície de um enredo pouco conflitivo e através
de ações moderadas, cautelosas, diria. Essa primeira parte do livro, Hajime
narra de forma singela, como aos 12 anos trava uma amizade estreita com
Shimamoto, primeiro (e talvez único) amor de sua vida. A linha argumentativa ao
longo da trama se desdobra nos encontros e desencontros de Hajime e Shimamoto ao
longo dos mais de 20 anos em que eles se (re)conhecem, se unem, se fundem e se
perdem. Cíclica e mutuamente, em distintas circunstâncias, eles se perdem. Escapam
de suas mãos, como raios do Sol, as fugazes oportunidades. Nas partes
seguintes, outros amores se erguem, a história se expande, fragmenta-se o tempo,
acelerara-se o ritmo e a trama se ajusta. Hajime tem uma primeira namorada na
primeira fase de sua vida adulta, Izumi. E mais tarde, aos 30 anos, se casa com
Yukiko, tem duas filhas e um sogro corrupto que vem de quebra. Contudo, ao
longo da vida de Hajime, a lembrança de Shimamoto invade o momento da fala. Nos
instantes de encontro, a sua presença física o atravessa e o dilacera,
permanecendo por longos períodos na memória de seu corpo. Paralelamente, o
narrador, assim como o próprio Murakami antes de ser escritor, abre um próspero
e intimista bar de jazz.
Daqui em diante convido à leitura do livro, o
resto do que se possa dizer sobre a história é mero spoiler. E eu não posso me atrever a sabotar, de maneira
irresponsável, o curso e as reviravoltas da linha narrativa do livro, porque mais
importante do que a cadeia de instantes e acontecimento que amarram a trama,
está na superfície do texto a escrita fina e elegante de Murakami. E estão implícitas
em suas entrelinhas questões profundas demais, que levam a reflexões igualmente
profundas. Talvez algo disso possa arriscar e trazer à tona.
“Sul da fronteira...” é sim uma cativante história
de amor, mas não limita seus conflitos a essa fronteira literária. Poderia ser entendida
inclusive como uma parábola niilista da fatídica condição do homem em sua peregrinação
pelo planeta. E, poderíamos dizer ainda que o título da obra delimita algumas
de suas principais alegorias. Por um lado o “Sul da fronteira”, emprestado do nome
de uma música de Nat King Cole representa o lugar concreto, um destino
definido, um amor preciso e carnal, posto que a canção fala, nada mais e nada
menos, do amor por uma mulher que ele quer encontrar no sul da fronteira com os
Estados Unidos (México). Por outro lado, o “Oeste do Sol” simboliza a caminhada
incansável do homem pela busca de um fim, um sentido luminoso para sua
existência. Segundo conta Yukiko, cansados de uma rotina repetitiva e tediosa que
se estende por dias intermináveis, principalmente porque as noites nunca chegam,
alguns homens e mulheres da Sibéria decidem caminhar sem propósito ao oeste do
Sol, perseguindo uma luz infinda, mas a qual não se pode alcançar jamais. Uma
luz solar eternamente presente e inatingível ao mesmo tempo. Trata-se, portanto,
de uma alegoria sobre a caminhada do ser humano pelas vias iniludíveis e jamais
traçadas de sua existência neste mundo, através do qual, em seu total despropósito
de sentido, encerra em si o real sentido da vida, pois é, finalmente, graças a essa
incansável busca que nos nutrimos de forças para atingir tudo aquilo que nos
move.
Murakami constrói então, a partir da síntese entre
o “Sul da fronteira” (como coisa real que cessa) e “o oeste do Sol” (como a
busca sem fim do inatingível), o principal argumento de sua obra. Assim, partir
a outro lugar com o fim de recomeçar um novo ciclo - dando por morto o vivido -
reinventar-se, tonar-se outro, surge refletido na ação de Hajime por diversos momentos
no livro. Pode ser visto ainda materializado na passagem em que o cadáver do
filho de Shimamoto, um bebê com apenas um dia de vida, tem suas cinzas espalhadas
na correnteza de um rio para morrer no mar, renascer ao céu e morrer novamente no
mar caindo do alto de uma nuvem em gotas de chuva: “As gotas de chuva batiam
mudas na superfície da água, sem que nem mesmo os peixes a percebessem[1]”.
Está, da mesma forma, na imagem da águia calva que para acasalar se alimenta de
arte e de amanhãs, enquanto que o abutre
se alimenta de cadáveres. Ensina-nos, enfim, que o tempo avança impiedoso e
toda oportunidade perdida é uma oportunidade morta, mas que sem prejuízo disso,
retorna. Hajime deixa, por mais de uma vez escapar literalmente de suas mãos
Shimamoto. O eterno retorno em si é, ao mesmo tempo, a perda sistemática de
algo que não retorna jamais.
Para finalizar, retomo as palavras com as quais
Fernando Ferrone deu inicio ao encontro que tivemos no círculo de leitura “Conversa
com Rita”: “É o livro ‘Sul da Fronteira, oeste do Sol’ um bom livro para entrarmos
no universo de Murakami?”. Pergunta certamente retórica cuja resposta pareceria
ser óbvia: “sim”. “Sul da Fronteira,
oeste do Sol” é talvez a obra que melhor configura o universo de Murakami, é
Murakami por excelência. Quase todas as suas “obsessões” estão presentes: a natação
como fuga frenética das angústias da vida; a música cujos interstícios modulam
a atmosfera da obra; uma mulher que desaparece; as luzes, os sons, os aromas, enfim,
as sinestesias próprias de um bar de Jazz; personagens misteriosos; finais
abertos. Ao mesmo tempo, um estilo de escrita que muito lembra a estética realista
dos finais do século XIX. Aliás, na passagem onde Hajime escuta South of the Border a sós com Shimamoto,
em seus precoces doze anos, descrevendo minuciosamente os movimentos sensuais,
mas também distraídos dela, lembra, e muito - salvando é claro, as
particularidades do período, o território vinculante e as marcas estilísticas -
“A missa do galo” de Machado de Assis. Em uma leitura comparada entre as duas obras
percebe-se a minuciosa descrição das ações, a sensualidade em contato com a
pureza e o despertar de uma consciência erótica. Quanto ao estilo realista da
escrita, talvez a maior diferença entre ambos seja que Murakami utiliza recursos
linguísticos e imagens que ultrapassam as ações e os objetos que estão na cena
para compor a mimeses com o real, ora porque são imateriais ora porque são sensações
internas e subjetivas: “Contemplei distraidamente como seus dedos desentortavam
devagar a trama quadriculada de sua saia. Havia algo de misterioso nesse gesto.
Como se da ponta de seus dedos brotassem uns fios transparentes que fossem
tecendo um novo tempo. [...] Shimamoto ainda estava movendo os dedos por cima
da saia. E senti uma dor doce, quase imperceptível, nas entranhas[2]”.
Esse estilo realista do autor (me atreveria a
chamar inclusive de hiper-realista essa
que é uma característica de autores japoneses das últimas décadas), não está somente
nas cores de uma escrita que valoriza o detalhe e a precisão de suas figuras de
linguagem para dar consistência a uma descrição que se aproxima milimetricamente
do real, mas se instala de maneira cirúrgica no espaço onde o conflito
realmente refaz a vida, no interior da cabeça de Hajime. Dessa forma, realidade
narrada e experiência vivida se entrelaçam e se tencionam no interior de seu
pensamento ao ponto dele mesmo já não distinguir as fronteiras do real e do imaginário.
A fiabilidade do narrador está decerto em desiquilíbrio, e nós, leitores,
estamos à mercê de suas próprias hesitações.
Seriam diversas as sentenças que poderíamos
retirar do livro para ilustrar e dar base às impressões (certamente incompletas
e imprecisas) que quis aqui registrar. Há, no entanto, uma passagem que se
repete, reverbera com força e define o argumento primordial do livro: “Há
muitas maneiras de viver. Há muitas maneiras de morrer. Mas isso não tem
nenhuma importância. No fim, somente resta o deserto.” É um livro que dispensa mais
comentários, o seu encanto está na particularidade e impressão de cada olhar e por
tal precisa ser lido.



