Primeira Pessoa do Singular – Haruki Murakami
O título do livro “Primeira pessoa do singular”
está direta e imediatamente referido à voz narrativa que compõe os oito contos
do livro, o “eu” é o pronome oculto e predominante da experiência narrada. O
seu paradoxo, entretanto, reside no fato de que esse “eu”, narrador e
protagonista dos relatos, singular em suas ações, multiplica-se por momentos e
de forma simultânea, em muitos “eus”. O arco que conecta os contos é, portanto,
essa primeira pessoa, personagem, protagonista, narrador, autor, vários e um só
ao mesmo tempo. Dessa forma, as “obsessões” amplamente conhecidas por nós,
leitores de Murakami, ao longo de suas obras, desde “Ouça a canção do vento”
até “A morte do comendador”, tecem as tramas dos contos utilizando um mesmo fio
condutor: suas paixões mais enraizadas. Estas que gravitam entorno do beisebol,
bares noturnos das noites de Tóquio, o jazz, o universo feminino em sua mais
vasta profundidade, a solidão implacável, o cotidiano cuja realidade mais
rígida é a sua magia.
Porém, pego emprestado o “singular” do título
para atribuí-lo ao estilo de Murakami, sem dúvida inigualável. Tendo em vista
certos conceitos das teorias clássicas literárias, o estilo de escrita de
Murakami extravasa e recusa uma classificação em gêneros literários
precedentes. A primeira vista “Primeira pessoa do singular” muito se aproxima à
“literatura fantástica” ou ainda ao “realismo mágico” ocidental, mas se difere
consideravelmente destes. Em primeira instância, se concebermos como “mundos
possíveis” todo e qualquer universo criado na ação literária, desde a mais
verossímil autobiografia ao mundo fantástico das fadas e duendes, por exemplo,
a “literatura fantástica” e o “realismo mágico” estariam na ruptura – por vezes
traumática, em outras nas sutilezas de um traço estético fino - desses polos.
Grosso modo, a literatura não lida, portanto, com realidade ou fantasia já que
todo relato é uma construção distanciada do mundo real, senão com “mundos
possíveis”, com lógicas próprias que se aproximam em menor ou maior grau da
mimese da realidade. Na “literatura fantástica” ou no “realismo mágico” há uma
desestabilidade nesse “mundo possível” que coloca em xeque a própria
fiabilidade das lógicas desse mundo. Cria-se certo desconforto, um assombro,
uma estranheza por meio de algum acontecimento extraordinário ou fantástico,
cavando uma reflexão nem sempre consciente, uma experiência sensitiva, um
deslocamento de realidades que, quando bem executado, suspende o fôlego do
leitor. Já em “Primeira pessoa do singular” a transição é permanente, abrupta
ou sútil, mas que dilui as fronteiras do real e da fantasia, em um diálogo
constante entre as impossibilidades de certos acontecimentos extraordinários e
a sensação de que tudo é possível na mais concreta e natural dinâmica do
cotidiano. Não há uma ruptura definitiva que provocaria uma desestabilidade das
regras de verossimilhança desse mundo, senão uma sobreposição dinâmica, lúdica
e simultânea das verossimilhanças desses mesmos mundos. Realidades paralelas e
de diferentes dimensões, entretanto, concebidas como uma só e ao mesmo tempo.
Esse recurso impacta intensa e estranhamente a leitura, e arriscaria dizer,
através de algumas estratégias fundamentais.
Por um lado, o desequilíbrio da realidade ocorre
com a introdução de elementos simbólicos que se deslocam em direção a certos
paradoxos. Como por exemplo, a imagem que emerge dos versos de um tanka escritos por uma poetisa – amante
de uma noite casual da qual o narrador sequer lembra o rosto ou o nome – que,
com afã de descansar sua consciência, apoia sua cabeça em um travesseiro de
pedra. Ou na percepção de que as lacunas de nosso interior poderiam ser
preenchidas na geometria paradoxal de um círculo cujos centros são muitos e a
circunferência nenhuma: “É o círculo que nos permite amar com o coração, sentir
profunda compaixão, abraçar utopias, encontrar a fé (ou algo próximo a ela).
Nesses casos aceitamos o paradoxo do círculo com naturalidade, por formar parte
de nós mesmos”. Ou ainda impressos nas ranhuras do LP “Charlie Parker plays
bossa nova” jamais gravado e que mesmo assim surge empilhado numa loja de
discos usados em uma das principais avenidas de Nova Iorque. Ou na imagem
estampada na capa do disco “White the Beatles” abraçado por uma garota que
desaparece para sempre no final do corredor de um colégio. Ou no estranho,
versátil e simbólico jogo de máscaras que permeia o conto Carnaval o qual esconde de maneira metafórica a feiura da
personagem, a esquizofrenia de Schumann e até mesmo a face autoral do próprio
Murakami. Ou no relato (aparentemente) autobiográfico sobre o fanatismo do
autor pelo time de beisebol Yakult Swallows e o mistério dos cartões
telefônicos com as imagens dos jogadores do time Hanshin Tigers que aparecem na
casa de sua viúva mãe sem qualquer explicação. Ou ainda na figura de um macaco
falante, que apesar de fantástico para os olhos do narrador, relata,
paradoxalmente, a mais natural história de desamor já vivida. Ou na enigmática
presença de uma mulher, que debruça sobre o balcão de um bar de jazz, detalhes
obscuros sobre a vida do narrador sem que este recorde jamais tê-la visto.
Outro recurso utilizado para entrelaçar as
distintas dimensões e substâncias das realidades é o eco produzido pelas
múltiplas vozes narrativas, em suas diferentes camadas de ficção, em suas
diferentes posições de anunciação. É por essa razão, talvez, que Murakami
insista em ancorar o narrador a certa flutuação narrativa à deriva de uma
realidade que, até nova ordem, deveria ser chamada de verdade. O traço
autobiográfico calca a simetria com o real. O tom intimista, as incertezas
diante das próprias falhas da memória e outras imperfeiçoes inerentes a
qualquer ser humano, bem como a profundidade de detalhes contados com a
propriedade de quem as viveu de forma veraz, traz a escrita à superfície das
páginas, mimetizando-a com o real. Uma das coisas que provoca a certeza dos
fatos narrados, sua verdade, são as frequentes incertezas vividas por quem as
narra. O narrador de “Primeira pessoa do
singular” rompe as contenções do autobiográfico e da ficção, um está para
potencializar o outro, para causar no leitor o estranhamento próprio daquilo
que está suspenso entre essas duas coisas, oscilando de forma permanente e
simultânea entre o real e o fantástico: “Tornei a experimentar a mesma sensação
de atordoamento da noite anterior, como se realidade e fantasia se cruzassem em
algum ponto sem possibilidades de discernir uma da outra”.
As máscaras
ou o Carnaval de Murakami
De fato, a interpretação de Carnaval de Rubistien é – por falta de
uma metáfora minimamente digna daquelas lançadas mão por Murakami para definir
dita obra - primorosa! Poderiam passar cada palavra de todo o léxico português
em sequência, translúcidas pela luz da minha tela e ainda assim, por infinita
que sejam em sua eterna progressão, seriam insuficientes e estariam ofuscadas
pela fina precisão com a qual Murakami traduz para a linguagem escrita a obra
de Schumann. Precisei dispor-me a ouvir Carnaval
para decifrar - com a mesma exatidão em que o tempo se fragmenta na
complexidade de sua cadência rítmica - o que o autor do conto homônimo
desafiava, a nós leitores, compreendermos. Pois bem, agora, ouvindo enquanto
escrevo, posso finalmente entender de maneira inerte, arrastado pela força de um
piano ao mesmo tempo furioso e alegre, lúcido e lúdico – e não é um mero jogo
de palavras – a dupla reverberação que compõe Carnaval da qual nos fala o narrador do conto (ou seria este o
próprio Murakami).
O conto Carnaval
nos fala de uma necessidade imperiosa e inerente ao ser humano. O indivíduo por
sua natureza cultural precisa antepor, entre o seu “eu” e a forma como os
demais veem esse “eu”, uma máscara. Tonar-se-ia insustentável – e insuportável
– mostrar a pele da face sem o véu daquilo pelo qual desejamos que nos
reconheçam. Dessa forma a máscara cai, mas também se reafirma nos ritos
carnavalescos. O carnaval é, portanto, a festa das máscaras, é por excelência a
exaltação da carne e do desejo, mitos e essências se desvelam, revelam-se a
loucura e o harmônico, celebra-se o delírio como a máxima expressão do real. A
máscara está colada à face durante a liturgia do carnaval, fantasia e realidade
se convulsionam numa só manifestação artística. É exatamente disso que trata a
obra de Schumann em sua obra prima Carnaval.
A peça se infiltra, por meio de numa harmonia confusa de melodia e acordes,
entre a máscara e o rosto, entre aquilo que se é e o que o desejo nos faz crer
que somos, nesse espaço que não existe, a não ser na arte. Schumann precisava
realizar tal operação para ocultar por detrás da máscara a sua esquizofrenia.
Murakami faz o mesmo no conto homônimo e, de uma maneira mais extensa ainda, em
todo o livro “Primeira pessoa do singular”.
“Primeira pessoa do singular” é o Carnaval
de Murakami. A voz do narrador transita incessantemente entre o caráter mais
profundo do autor e a fala libertadora de um personagem (ou deveríamos dizer
personagens?) quem narra os contos em primeira pessoa do singular. Compõem os
oito contos, portanto, uma narrativa de camadas e matizes diversos que dão cor
e textura a uma sequência de máscaras que se intercalam, rompem-se, escondem-se
uma nas outras, presas finalmente à face de uma persona que se apresenta
genuinamente como o autor da experiência narrada. A máscara, no entanto, se
desestabiliza, ameaça cair, e assim por vários instantes permite entrever a
face do próprio Murakami. E o que parecia ser a narrativa de uma primeira
pessoa do singular, se multiplica, desfarela-se, imprime-se em muitos
narradores que, apesar das particularidades de suas gêneses, poderiam ser
decerto o mesmo, ou ainda, o mesmo Murakami em cada um dos contos do livro.
Afinal, reconhecer-se entre todas as máscaras que escondem o verdadeiro rosto
daquilo que essencialmente somos
talvez seja o propósito – e, ao mesmo tempo, o terror - de toda uma existência.
Tal como nos mostra o último conto que dá o título ao livro: “Quanto mais eu me
olhava menos me reconhecia naquela imagem daquele homem que o espelho me
mostrava, e no entanto, quem podia ser, senão eu, aquele que me observava, seus
olhos fixos nos meus?”[...] “Seja como for, continuei olhando enfrente,
perguntando a mim mesmo quem seria aquele que me observava no espelho”.
Para concluir, em “Primeira pessoa do
singular”, muitas vezes é o próprio narrador quem provoca a desestabilidade das
regras da realidade, seja por falsas memórias, seja pela atmosfera onírica que
o atravessa permanentemente, cuja única certeza é a dúvida. Não há, portanto,
fronteiras, aliás, não deveria por que havê-las. A escrita de Murakami nos
seduz, e envolve a tal ponto as realidades, que a vida mesma e o ato da leitura
se dissipam na palma de nossas mãos. A referência autobiográfica e o
acontecimento fantástico são um só. Pois na vida, assim como na literatura, a
realidade cotidiana é o advento mais mágico que se possa alcançar. No entanto,
se ainda houver alguma dúvida de quem é o autor do livro – questão esta que
assalta o próprio Murakami - cito um trecho que não resolve o enigma, pelo
contrário, deixa em suspenso uma reflexão ainda mais profunda: “Felizmente um
conhecido meu com um importante cargo em uma imprensa, ofereceu-me a feliz
oportunidade de imprimir, a um preço bastante acessível, quinhentos exemplares
modestamente encadernados, embora, isso sim, ordenadamente enumerados e
assinados atentamente por mim: Haruki Murakami, Haruki Murakami, Haruki
Murakami...”.







