domingo, 27 de agosto de 2023

 


Primeira Pessoa do Singular – Haruki Murakami

 

O título do livro “Primeira pessoa do singular” está direta e imediatamente referido à voz narrativa que compõe os oito contos do livro, o “eu” é o pronome oculto e predominante da experiência narrada. O seu paradoxo, entretanto, reside no fato de que esse “eu”, narrador e protagonista dos relatos, singular em suas ações, multiplica-se por momentos e de forma simultânea, em muitos “eus”. O arco que conecta os contos é, portanto, essa primeira pessoa, personagem, protagonista, narrador, autor, vários e um só ao mesmo tempo. Dessa forma, as “obsessões” amplamente conhecidas por nós, leitores de Murakami, ao longo de suas obras, desde “Ouça a canção do vento” até “A morte do comendador”, tecem as tramas dos contos utilizando um mesmo fio condutor: suas paixões mais enraizadas. Estas que gravitam entorno do beisebol, bares noturnos das noites de Tóquio, o jazz, o universo feminino em sua mais vasta profundidade, a solidão implacável, o cotidiano cuja realidade mais rígida é a sua magia.

Porém, pego emprestado o “singular” do título para atribuí-lo ao estilo de Murakami, sem dúvida inigualável. Tendo em vista certos conceitos das teorias clássicas literárias, o estilo de escrita de Murakami extravasa e recusa uma classificação em gêneros literários precedentes. A primeira vista “Primeira pessoa do singular” muito se aproxima à “literatura fantástica” ou ainda ao “realismo mágico” ocidental, mas se difere consideravelmente destes. Em primeira instância, se concebermos como “mundos possíveis” todo e qualquer universo criado na ação literária, desde a mais verossímil autobiografia ao mundo fantástico das fadas e duendes, por exemplo, a “literatura fantástica” e o “realismo mágico” estariam na ruptura – por vezes traumática, em outras nas sutilezas de um traço estético fino - desses polos. Grosso modo, a literatura não lida, portanto, com realidade ou fantasia já que todo relato é uma construção distanciada do mundo real, senão com “mundos possíveis”, com lógicas próprias que se aproximam em menor ou maior grau da mimese da realidade. Na “literatura fantástica” ou no “realismo mágico” há uma desestabilidade nesse “mundo possível” que coloca em xeque a própria fiabilidade das lógicas desse mundo. Cria-se certo desconforto, um assombro, uma estranheza por meio de algum acontecimento extraordinário ou fantástico, cavando uma reflexão nem sempre consciente, uma experiência sensitiva, um deslocamento de realidades que, quando bem executado, suspende o fôlego do leitor. Já em “Primeira pessoa do singular” a transição é permanente, abrupta ou sútil, mas que dilui as fronteiras do real e da fantasia, em um diálogo constante entre as impossibilidades de certos acontecimentos extraordinários e a sensação de que tudo é possível na mais concreta e natural dinâmica do cotidiano. Não há uma ruptura definitiva que provocaria uma desestabilidade das regras de verossimilhança desse mundo, senão uma sobreposição dinâmica, lúdica e simultânea das verossimilhanças desses mesmos mundos. Realidades paralelas e de diferentes dimensões, entretanto, concebidas como uma só e ao mesmo tempo. Esse recurso impacta intensa e estranhamente a leitura, e arriscaria dizer, através de algumas estratégias fundamentais.

Por um lado, o desequilíbrio da realidade ocorre com a introdução de elementos simbólicos que se deslocam em direção a certos paradoxos. Como por exemplo, a imagem que emerge dos versos de um tanka escritos por uma poetisa – amante de uma noite casual da qual o narrador sequer lembra o rosto ou o nome – que, com afã de descansar sua consciência, apoia sua cabeça em um travesseiro de pedra. Ou na percepção de que as lacunas de nosso interior poderiam ser preenchidas na geometria paradoxal de um círculo cujos centros são muitos e a circunferência nenhuma: “É o círculo que nos permite amar com o coração, sentir profunda compaixão, abraçar utopias, encontrar a fé (ou algo próximo a ela). Nesses casos aceitamos o paradoxo do círculo com naturalidade, por formar parte de nós mesmos”. Ou ainda impressos nas ranhuras do LP “Charlie Parker plays bossa nova” jamais gravado e que mesmo assim surge empilhado numa loja de discos usados em uma das principais avenidas de Nova Iorque. Ou na imagem estampada na capa do disco “White the Beatles” abraçado por uma garota que desaparece para sempre no final do corredor de um colégio. Ou no estranho, versátil e simbólico jogo de máscaras que permeia o conto Carnaval o qual esconde de maneira metafórica a feiura da personagem, a esquizofrenia de Schumann e até mesmo a face autoral do próprio Murakami. Ou no relato (aparentemente) autobiográfico sobre o fanatismo do autor pelo time de beisebol Yakult Swallows e o mistério dos cartões telefônicos com as imagens dos jogadores do time Hanshin Tigers que aparecem na casa de sua viúva mãe sem qualquer explicação. Ou ainda na figura de um macaco falante, que apesar de fantástico para os olhos do narrador, relata, paradoxalmente, a mais natural história de desamor já vivida. Ou na enigmática presença de uma mulher, que debruça sobre o balcão de um bar de jazz, detalhes obscuros sobre a vida do narrador sem que este recorde jamais tê-la visto.

Outro recurso utilizado para entrelaçar as distintas dimensões e substâncias das realidades é o eco produzido pelas múltiplas vozes narrativas, em suas diferentes camadas de ficção, em suas diferentes posições de anunciação. É por essa razão, talvez, que Murakami insista em ancorar o narrador a certa flutuação narrativa à deriva de uma realidade que, até nova ordem, deveria ser chamada de verdade. O traço autobiográfico calca a simetria com o real. O tom intimista, as incertezas diante das próprias falhas da memória e outras imperfeiçoes inerentes a qualquer ser humano, bem como a profundidade de detalhes contados com a propriedade de quem as viveu de forma veraz, traz a escrita à superfície das páginas, mimetizando-a com o real. Uma das coisas que provoca a certeza dos fatos narrados, sua verdade, são as frequentes incertezas vividas por quem as narra.  O narrador de “Primeira pessoa do singular” rompe as contenções do autobiográfico e da ficção, um está para potencializar o outro, para causar no leitor o estranhamento próprio daquilo que está suspenso entre essas duas coisas, oscilando de forma permanente e simultânea entre o real e o fantástico: “Tornei a experimentar a mesma sensação de atordoamento da noite anterior, como se realidade e fantasia se cruzassem em algum ponto sem possibilidades de discernir uma da outra”.

As máscaras ou o Carnaval de Murakami

De fato, a interpretação de Carnaval de Rubistien é – por falta de uma metáfora minimamente digna daquelas lançadas mão por Murakami para definir dita obra - primorosa! Poderiam passar cada palavra de todo o léxico português em sequência, translúcidas pela luz da minha tela e ainda assim, por infinita que sejam em sua eterna progressão, seriam insuficientes e estariam ofuscadas pela fina precisão com a qual Murakami traduz para a linguagem escrita a obra de Schumann. Precisei dispor-me a ouvir Carnaval para decifrar - com a mesma exatidão em que o tempo se fragmenta na complexidade de sua cadência rítmica - o que o autor do conto homônimo desafiava, a nós leitores, compreendermos. Pois bem, agora, ouvindo enquanto escrevo, posso finalmente entender de maneira inerte, arrastado pela força de um piano ao mesmo tempo furioso e alegre, lúcido e lúdico – e não é um mero jogo de palavras – a dupla reverberação que compõe Carnaval da qual nos fala o narrador do conto (ou seria este o próprio Murakami).

O conto Carnaval nos fala de uma necessidade imperiosa e inerente ao ser humano. O indivíduo por sua natureza cultural precisa antepor, entre o seu “eu” e a forma como os demais veem esse “eu”, uma máscara. Tonar-se-ia insustentável – e insuportável – mostrar a pele da face sem o véu daquilo pelo qual desejamos que nos reconheçam. Dessa forma a máscara cai, mas também se reafirma nos ritos carnavalescos. O carnaval é, portanto, a festa das máscaras, é por excelência a exaltação da carne e do desejo, mitos e essências se desvelam, revelam-se a loucura e o harmônico, celebra-se o delírio como a máxima expressão do real. A máscara está colada à face durante a liturgia do carnaval, fantasia e realidade se convulsionam numa só manifestação artística. É exatamente disso que trata a obra de Schumann em sua obra prima Carnaval. A peça se infiltra, por meio de numa harmonia confusa de melodia e acordes, entre a máscara e o rosto, entre aquilo que se é e o que o desejo nos faz crer que somos, nesse espaço que não existe, a não ser na arte. Schumann precisava realizar tal operação para ocultar por detrás da máscara a sua esquizofrenia. Murakami faz o mesmo no conto homônimo e, de uma maneira mais extensa ainda, em todo o livro “Primeira pessoa do singular”. 

“Primeira pessoa do singular” é o Carnaval de Murakami. A voz do narrador transita incessantemente entre o caráter mais profundo do autor e a fala libertadora de um personagem (ou deveríamos dizer personagens?) quem narra os contos em primeira pessoa do singular. Compõem os oito contos, portanto, uma narrativa de camadas e matizes diversos que dão cor e textura a uma sequência de máscaras que se intercalam, rompem-se, escondem-se uma nas outras, presas finalmente à face de uma persona que se apresenta genuinamente como o autor da experiência narrada. A máscara, no entanto, se desestabiliza, ameaça cair, e assim por vários instantes permite entrever a face do próprio Murakami. E o que parecia ser a narrativa de uma primeira pessoa do singular, se multiplica, desfarela-se, imprime-se em muitos narradores que, apesar das particularidades de suas gêneses, poderiam ser decerto o mesmo, ou ainda, o mesmo Murakami em cada um dos contos do livro. Afinal, reconhecer-se entre todas as máscaras que escondem o verdadeiro rosto daquilo que essencialmente somos talvez seja o propósito – e, ao mesmo tempo, o terror - de toda uma existência. Tal como nos mostra o último conto que dá o título ao livro: “Quanto mais eu me olhava menos me reconhecia naquela imagem daquele homem que o espelho me mostrava, e no entanto, quem podia ser, senão eu, aquele que me observava, seus olhos fixos nos meus?”[...] “Seja como for, continuei olhando enfrente, perguntando a mim mesmo quem seria aquele que me observava no espelho”.

Para concluir, em “Primeira pessoa do singular”, muitas vezes é o próprio narrador quem provoca a desestabilidade das regras da realidade, seja por falsas memórias, seja pela atmosfera onírica que o atravessa permanentemente, cuja única certeza é a dúvida. Não há, portanto, fronteiras, aliás, não deveria por que havê-las. A escrita de Murakami nos seduz, e envolve a tal ponto as realidades, que a vida mesma e o ato da leitura se dissipam na palma de nossas mãos. A referência autobiográfica e o acontecimento fantástico são um só. Pois na vida, assim como na literatura, a realidade cotidiana é o advento mais mágico que se possa alcançar. No entanto, se ainda houver alguma dúvida de quem é o autor do livro – questão esta que assalta o próprio Murakami - cito um trecho que não resolve o enigma, pelo contrário, deixa em suspenso uma reflexão ainda mais profunda: “Felizmente um conhecido meu com um importante cargo em uma imprensa, ofereceu-me a feliz oportunidade de imprimir, a um preço bastante acessível, quinhentos exemplares modestamente encadernados, embora, isso sim, ordenadamente enumerados e assinados atentamente por mim: Haruki Murakami, Haruki Murakami, Haruki Murakami...”.



miércoles, 21 de junio de 2023

 

Mar inquieto - Mishima

A narrativa de Mishima é cinematográfica. Sua escrita, sob a luz mais clara da disciplina apolínea, transcende a corrente clássica, pois projeta as ações dramáticas de uma maneira sistemática, quadro a quadro, como os direcionamentos e aproximações de uma lente focal próprios de um filme contemporâneo. A obra começa apresentando a ilha vista de cima, a tomada área se aproxima do alto da narrativa feito drone - recurso inimaginável para o autor daquela década de 70.  E assim a vertigem das cenas é constante e seletiva, bem como a regulação do seu ritmo e os detalhes minuciosos das imagens criadas e escritas. Ou dito de uma maneira mais precisa, são as imagens das paisagens e os fenômenos da natureza que em definitiva criam a escrita de “Mar inquieto”. A topografia, as temperaturas e suas variações estacionais, as temporadas da pesca dos mais variados seres marinhos, as violentas atividades do vento e da água castigando as rochas inabaláveis - fruto da fúria implacável de um mar inquieto- acompanham, por vezes se confundem, às emoções essencialmente humanas.

À primeira vista, a trama de “Mar inquieto” é relativamente simples. Aborda um conflito clássico, uma paixão entre dois jovens impossível de ser consumada em virtude de um impedimento de uma moral maior. Uma intriga, um boato, ou um mal entendido põe os amantes em um impasse, força uma separação que somente ao final da obra é resolvido. No entanto, no reverso desse entreamado existe uma profundidade turva, mas profunda enfim. E ela poderia ser vista com maior clareza se iluminássemos - como os holofotes de uma obra teatral - a ação dramática, os conflitos individuais e a retidão ética de cada um dos personagens. E é justamente isso que Mishima faz. Por meio de um recurso de narrativa em que os focos da descrição se movem junto aos personagens, lendo inclusive seus pensamentos e intenções, o autor compõe personalidades complexas, colocando-os à prova diante da dicotômica condição de uma ética universal e uma moral perversa. Portanto, parte da compreensão da obra é decifrar a complexidade ética de cada personagem através de suas mais severas decisões.  

Os protagonistas de “Mar inquieto” são Hatsue e Shinji. Dois jovens virtuosos, fortes e belos, ao melhor estilo dos heróis gregos. E como nas epopeias gregas, a sua virtude emerge de uma prova moral pela qual, a sua ação para resolver o conflito, revela a essência do herói. E por mais que o protagonismo de Hatsue esteja limitado a um foco narrativo que pouco a acompanha durante a história, fazendo-a parecer inclusive uma personagem escassa de conflitos, suas ações são contundentes. A sua nobreza comove. Prova disto pode ser visto na passagem em que Hatsue dá à mãe de Shinji o prêmio que ganhara numa disputa com outras mergulhadoras – entre elas a própria mãe de Shinji – consagrando assim, diante das mulheres presentes, a sua índole imaculada. Da mesma forma Shinji delimita, por meio da nobreza de suas ações, seu campo ético. Tal como ocorre na cena no interior de uma torre abandonada, azotada por um interminável dilúvio, quando diante da possível perda da virgindade de ambos - o que significaria uma contraversão moral pautada na necessidade do casamento antes do ato sexual - Shinji freia a fúria de seu desejo com uma correção de caráter que o antecede “... pareceu-lhe ter atingido a parte mais profunda do ser de Hatsue, onde radicava sua moral, e não insistiu mais”. Cada um dos personagens da obra carrega em seu âmago um caráter cujo valor é evidenciado, não só pela reação diante das intrincadas encruzilhadas da trama, mas também pelas sutilezas de uma escrita de um narrador onipresente, quem deixa transparecer pensamentos e sensações desses personagens numa dosagem precisa e sistemática.

Além da importância dos personagens que dão profundidade e verossimilhança à obra, outro aspecto que assume um papel de protagonismo, tratado com o mesmo cuidado de detalhes, é a ilha de Utajima. Quase toda a história se desenvolve nos cinco quilômetros de extensão dessa ilha. A minuciosa descrição dos elementos naturais e suas ações climáticas, o cenário de uma beleza selvagem, atinge uma dimensão tão real na escrita de Mishima que é difícil imaginar que o autor não esteja, durante o ato da escrita, observando in locus todo esse cenário. É como se o autor estivesse com seu cavalete apoiado no ponto mais alto da ilha, ou seja, no topo do farol, pintando contemplativamente uma paisagem impressionista. O que nos leva a perguntar: é realmente possível que Mishima estivesse escrevendo “Mar inquieto” no interior de uma habitação qualquer de Tóquio? E se assim fosse, ele teria feito toda a composição exata da paisagem apelando somente à memória? Ou terá ele inventado certos espaços imaginários preenchendo lacunas da lembrança com elementos e entidades imaginadas? De qualquer forma, a precisão com a qual ele descreve a atmosfera da ilha, as coordenadas cartesianas exatas onde se misturam os fenômenos naturais com a suas respectivas percepções sensoriais, impressiona.

Da mesma forma a questão temporal é trabalhada com maestria por Mishima. Poderíamos dizer que o tempo se move em três dimensões que se articulam entre si, mas também com o espaço. Em primeiro lugar, a dimensão temporal marcada pelas condições naturais, resultado dos fenômenos provocados pelas estações do ano. Essa é uma concepção do tempo de primeira ordem, pois determina as ações climáticas que se abatem sobre a ilha, define a lida da pesca e outras atividades sociais, pois estas dependem do clima e das estações, como a agricultura, incidindo diretamente nas dinâmicas da população local. Outro eixo temporal é justamente a sensação da falta dele, ou seja, a iminência de uma atemporalidade. Há uma espécie de flutuação que indetermina o período histórico em que a obra ocorre, absorvendo o período a certo vazio. Apenas na página 22, quando se dá a conhecer a causa da morte do pai de Shinji – sua embarcação fora atingida por um avião bombardeiro- torna-se possível deduzir o contexto de pós-guerra. É como se a linha temporal da ilha avançasse sobre sua própria história e formasse assim sua peculiar construção cultural, sem conexão com os acontecimentos do mundo exterior. No decorrer da trama certos aspectos do contexto permitem entrever o período da década de 60, início da prosperidade japonesa, as novidades modernas e sua influência do ocidente, tal como o cinema de faroeste, os bondes e outras coisas alheias à ilha. Mas as novidades de uma Tóquio supramoderna só servem para demarcar uma vez mais a fronteira com o mundo externo porque a ilha se desloca em seu próprio tempo e está simultaneamente situada em seu próprio espaço. Somente os barcos conectam esses tempos, navegando sobre a lacunas inundadas pelo Oceano Pacífico. E por último, no que diz respeito às dinâmicas do tempo, destaca-se o fluxo da narrativa, o seu ritmo. Mishima que ao longo dos primeiros capítulos se detém sem pressa nos pormenores de uma descrição excessivamente detalhada, acelera seu ritmo à conveniência do relato. Tal como ocorre na épica cena em que Shinji, a fim de executar a missão suicida de amarrar o barco a uma boia, atira-se da proa para lutar contra a fúria de um mar tempestuoso, onde a invisibilidade da noite e a força das águas causam calafrios no leitor. Em meio a um esforço corporal exaustivo do herói o ritmo da narrativa atinge um frenesi comparado às lutas marciais japonesas. De fato, no conto “Os sabres”, Mishima utiliza um recurso de narrativa similar. A aceleração vertiginosa e repentina das ações dos personagens em “Os sables” recria uma atmosfera, ao mesmo tempo veloz e brutal, de um combate de kendô.

Por tudo isso, a narrativa de Mishima é também emocionante. Palpita uma emoção ao longo do livro que, além de comover-nos, dá vida aos personagens. Da profundidade de cada um deles, agita-se algo semelhante ao entorno natural da ilha, ajudando-nos a entender seu caráter e suas virtudes - ou a falta deles. Dessa forma, Mishima entrelaça o rigor técnico de uma escrita clássica com a potência de uma emoção lírica. Isso porque a construção de sua narrativa utiliza a onipotência de uma terceira pessoa para atravessar precisamente onde a lente de uma câmara – como limitação da linguagem cinematográfica que só revela o que a lente vê- não teria alcance, ou seja, no interior das emoções, suas percepções mais íntimas e a sensibilidade reativa de seus personagens. Uma percepção que surpreende, por vezes, até mesmo quem a sente, tal como acontece com Shinji: “Ter consciência de que em seu interior aconteciam coisas que nem sequer ele mesmo havia suspeitado era um golpe ao seu orgulho e sua raiva crescente fez que suas faces se esquentassem ainda mais”. Dessa forma, o externo e o interno se tencionam, reafirmam-se, definem suas fronteiras, não só para estabelecer a geografia da ilha, mas também na relação que cada um dos seus personagens tem entre suas emoções e seu entorno: “Estúpida borboleta! Se deseja partir, o único que deves fazer é pousar no navio e viajar como uma senhora”, diz a mãe de Shinji ao observar uma borboleta que voa a esmo sobre a superfície plana do mar, enquanto ela mesma se pergunta - nunca de uma maneira direta - porque ela não abandona a ilha de Utajima. 

O certo é que Mishima está para a literatura japonesa como o está Shakespeare para a literatura inglesa ou Cervantes para a literatura espanhola. Poderão discordar - com certa razão - aqueles que atribuem a Kawabata ou a Sozeki dito merecimento. Porém em nenhum outro autor vê-se tão latente a execução estética de “A ética do samurai moderno”. Em “Mar inquieto”, Mishima subverte a visão romântica do suicídio de Romeu e Julieta. Em sua obra o suicídio não conduz à solução definitiva para um amor sem retorno, mas é na verdade o caminho mais justo que leva à vida. A escolha que Shinji faz ao jogar-se ao mar e lutar contra a morte, sabendo que seria uma batalha decerto perdida – e ainda assim vencer -, é a única razão ética de o porquê devemos continuar com vida.



miércoles, 5 de abril de 2023

Klara e o Sol – Kazuo Ishiguro

 

O livro “Klara e o Sol” poderia ser lido de várias formas (prova disso é a multiplicidade de finais possíveis de interpretar), mas a leitura mais leal às intenções de Ishiguro, a que se aproxima com maior exatidão à sua essência, talvez seja aquela que entende a obra como uma alegoria. Uma alegoria que nos remete a uma questão ontológica: O que nos torna seres humanos? O que nos diferenciaria de uma máquina capaz de reproduzir percepções subjetivas, condutas e emoções próprias do ser humano da maneira mais exata? Saberá a máquina sentir? Decerto, poderá ela perceber as emoções através de uma minuciosa observação de seus sinais, no entanto, perceber todas as tonalidades de uma emoção, significa sentir essa emoção?  A “gentileza” à qual Klara frequentemente se refere, a mesma “gentileza” que ela descreve perceber durante um abraço maternal, é amor?  Por mais que Klara acredite ter muitos sentimentos, produto de sua apurada habilidade de observação, por muito que ela consiga categorizá-los e tê-los a disposição, ela é capaz de amar verdadeiramente? Colocar-se no lugar do outro é suficiente?  Arriscaria dizer - e aqui o risco que incorro é cair numa reflexão piegas - que o ponto de inflexão na mensagem de Ishiguro, e o que nos diferencia enquanto seres humanos de Klara, é a capacidade de amar, com todas as imperfeições que isso implica e todos os erros a que isso conduz. Mas seríamos capazes de amar apesar de saber que esse amor não é sequer sentido como é o caso de uma máquina?

O enredo de “Klara e o Sol” se desenvolve em um contexto indeterminado. Poderia facilmente transcorrer em qualquer tempo futuro não muito distante e em qualquer metrópole do planeta. Como bem pontuou Aparecida Vilaça em sua resenha sobre o livro, trata-se de uma realidade próxima, porém sutilmente deslocada. Já quem narra a história, em primeira pessoa, como quem resgata as memórias de um passado, é Klara. Klara é um AA. Os AAs são dispositivos robóticos de características muito similares aos dos seres humanos projetados para acompanhar e tutorear crianças e jovens na sua fase de desenvolvimento. A visão de Klara e suas percepções narradas estão limitadas, portanto, a sua visão primária que tem do mundo sensível e dos seres humanos. Aliás, a sua forma de ver o mundo está frequentemente compatibilizada em cubos e caixas. Sua condição inicial no interior de uma loja e sua inteligência em desenvolvimento limita essa perspectiva. No entanto, Klara tem uma habilidade que a destaca dos demais AAs, ela é ávida por aprender, observa atentamente o entorno bem como o comportamento dos demais, nutrida sempre de uma crescente curiosidade.

Ishiguro se aproveita, portanto, dessa natureza ingênua de Klara para armar uma estratégia de narrativa que se próxima ao naíf. De uma forma ingênua e espontânea a história que nos narra Klara revela a trama, mas também as modulações dos personagens, na medida em que ela mesma desvenda seus mistérios. O suspense no final de cada parte é a garantia de mais revelações na leitura subsequente. O resultado é o desejo de avançar em direção ao desfecho da trama sem pausas, surpreendidos de forma progressiva, presos no entreamado dos conflitos.

Apesar de, o conflito central da obra, parecer evidente, muitos canais se abrem em um terreno profícuo de analises. O eixo central da narrativa se desenvolve no conflito que Klara tem para cumprir a missão pela qual ela foi criada, proteger, a todo custo, a criança que é sua proprietária. Mais tarde Klara descobre outro propósito de uso, servir de continuidade a essa criança. A saga de Klara começa, portanto, na loja onde ela e outros AAs estão expostos para a comercialização. Nesse começo, a descrição da narrativa está limitada pela visão que Klara tem do interior da loja. Já o mundo exterior se apresenta fragmentado pela vitrine onde por momentos ela está exposta. Quem compra Klara é a mãe de Josie. Josie é uma criança de 12 que padece de uma enfermidade desconhecida, ao menos não fica claro a sua causa até certo ponto da trama. Paralelo a isso, o personagem de Ricky faz o contraponto com os demais personagens humanos, é um garoto sensível, simples e empático. Ele e Josie têm um plano desde a mais precoce infância, ao se tornarem adultos se casariam e formariam uma família. Ricky não pertence à casta dos demais meninos e meninas do círculo social de Josie, pois ele não é “elevado”. Há uma marca visível reconhecida de imediato pelos personagens, que, entretanto, permanece, durante todo o livro, oculta do leitor. Uma característica que supõe uma alteração genética, tornando certas crianças “elevadas”, com melhorias de aprendizagem e outras vantagens em suas habilidades. Porém, esse parece ser um procedimento de custo elevado, não disponível a todos, alheio a Ricky por exemplo. De qualquer forma ser “elevado” pode trazer consigo sérios efeitos colaterais.

É uma tarefa difícil resenhar sobre “Klara e o Sol” sem analisar o seu final, e se agrava se quisermos fazê-lo evitando spoilers. Porém, é possível dizer que a relação de Klara com o Sol, durante todo o livro, constrói o final. Não com o intuito de preparar um terreno para seu desfecho senão para surpreender-nos, deixar-nos ao fechar o livro com uma cadeia de interrogações e uma série de ideias perturbadoras. Afinal, uma máquina é capaz de compreender os fenômenos supraterrestres e tem melhor apurado o seu sistema de crenças do que nós os seres humanos? A esperança de Klara ao longo da história, aparentemente apoiada em uma fé ingênua, de quem está condenada a uma perspectiva limitada da realidade, é capaz de compreender a existência de tudo, suas causas e consequências, com maior sabedoria que os melhores pensadores e religiosos de todos os tempos? Por que seria mais verdadeira a onipresença e a onipotência de um Deus cuja evidencia de existência é nula, do que o Sol, que nutre Klara e, de alguma maneira, nos nutre? De fato outras civilizações idolatravam o Sol como a um Deus, mas Klara é uma máquina, daí todo o paradoxo do livro.

Os monólogos que Klara mantém com o Sol, remetem a algumas passagens de Zaratustra, de Nietzsche, principalmente nas primeiras linhas do livro quando o “astro superabundante” é a única testemunha do inicio de sua epopeia. Zaratustra, quem viveu em solidão no alto de uma montanha por dez anos, e por dez anos não sentiu fadiga, dirige-se ao Sol para falar-lhe sobre seu declínio rumo aos homens. Compara dessa forma a força do Sol, com sua própria vontade de potencia, com a necessidade de transbordar seu conhecimento, derramando generosamente, assim como os raios do Sol, sua sabedoria trasbordante aos homens. Também Mishima recria no conto “Los sables” um monólogo intenso e cheio de significados poéticos entre Jiro Kokubo e o Sol. Só que no caso do personagem de Mishima, Jiro desafia o Sol com um olhar que o enfrenta e, por uma questão de honra, recusa-se ser ofuscado.

Ao trazer “Klara e o Sol” para compor o projeto “Letras Literariás Japonesas” passei por instantes de hesitação, pois como é sabido, Ishiguro apesar de ter nascido no Japão, migrou ainda muito jovem à Inglaterra onde cresceu como indivíduo, mas também como escritor. A questão que se apresentava, então, era: Ishiguro pertence aos cânones da literatura japonesa? É possível colocá-lo ao lado de Nagai Kafu ou Haruki Murakami, por exemplo? Para ser honesto, não disponho de elementos, nem tampouco argumentos objetivos que possam responder a essa pergunta. Existe, no entanto, algo no estilo de escrita de Ishiguro que me leva a responder: sim, “Klara e o Sol” é uma obra cume da literatura japonesa. Ousaria ainda estabelecer aqui um paralelo com outra expressão artística essencialmente japonesa: o mangá e o animé. Ninguém, diante de um mangá ou um animé, pergunta qual a origem dessa arte. Há uma identidade visual, um traço estético que ultrapassa qualquer descrição racional do por que um mangá ou um animé são sem dúvida o que são. O mesmo acontece com boa parte das obras literárias japonesas modernas cuja estética imprime uma marca inconfundível, que vai muito além de explicações ou críticas deliberadas. O mesmo acontece com Ishiguro. Penso, inclusive que não seria inapropriado dizer que o argumento de “Klara e o Sol” poderia ter sido levado para o interior dos quadrinhos de um mangá ou às telas animadas de um animé, porque pertencem, apesar da diferença de linguagens, à mesma potência artística.    

Para finalizar resgato uma frase proferida por Klara, em seu apelo final, ao Sol: “O que crianças sabem sobre o amor verdadeiro”? Referindo-se aqui ao amor que Ricky tem por Josie. Klara condensa aqui, em uma singela frase – mas com a profundidade que Klara costuma ter - o que seria talvez a essência do livro: O que sabemos, nós, sobre o amor verdadeiro?





martes, 28 de marzo de 2023

Sul da fronteira, oeste do Sol - Haruki Murakami

Letras Literárias Japonesas - Podcast 


Sul da fronteira, oeste do Sol – Haruki Murakami

O livro “Sul da fronteira, oeste do Sol” é, antes de qualquer coisa, uma história de amor. Não espere, entretanto, derreter-se de ternura (poucas são as vezes que isso acontece), antes nos derretemos por vários momentos, de um calor que sobe pelas entranhas, provocado por descrições ardentes. Também não espere um final feliz ou trágico, é do estilo de Murakami não apelar a finais para encerrar uma obra. Outras questões atravessam a obra. De suas profundidades nascem conflitos próprios do ser humano. De suas alturas vêm ao proscênio a luz do jazz, a chuva, toques na superfície mais alta da pele, Tóquio, dias vazios, pessoas esvaziadas, solidões vazias, irremediavelmente vazias.  Mas, repito, trata-se de uma história de amor.

Hajime é o protagonista do livro. E é também quem narra a sua história. Uma história que começa a ser contada na sequência cronológica e linear dos acontecimentos. Avança lenta, perdendo-se em detalhes excessivamente descritivos, na planície de um enredo pouco conflitivo e através de ações moderadas, cautelosas, diria. Essa primeira parte do livro, Hajime narra de forma singela, como aos 12 anos trava uma amizade estreita com Shimamoto, primeiro (e talvez único) amor de sua vida. A linha argumentativa ao longo da trama se desdobra nos encontros e desencontros de Hajime e Shimamoto ao longo dos mais de 20 anos em que eles se (re)conhecem, se unem, se fundem e se perdem. Cíclica e mutuamente, em distintas circunstâncias, eles se perdem. Escapam de suas mãos, como raios do Sol, as fugazes oportunidades. Nas partes seguintes, outros amores se erguem, a história se expande, fragmenta-se o tempo, acelerara-se o ritmo e a trama se ajusta. Hajime tem uma primeira namorada na primeira fase de sua vida adulta, Izumi. E mais tarde, aos 30 anos, se casa com Yukiko, tem duas filhas e um sogro corrupto que vem de quebra. Contudo, ao longo da vida de Hajime, a lembrança de Shimamoto invade o momento da fala. Nos instantes de encontro, a sua presença física o atravessa e o dilacera, permanecendo por longos períodos na memória de seu corpo. Paralelamente, o narrador, assim como o próprio Murakami antes de ser escritor, abre um próspero e intimista bar de jazz.

Daqui em diante convido à leitura do livro, o resto do que se possa dizer sobre a história é mero spoiler. E eu não posso me atrever a sabotar, de maneira irresponsável, o curso e as reviravoltas da linha narrativa do livro, porque mais importante do que a cadeia de instantes e acontecimento que amarram a trama, está na superfície do texto a escrita fina e elegante de Murakami. E estão implícitas em suas entrelinhas questões profundas demais, que levam a reflexões igualmente profundas. Talvez algo disso possa arriscar e trazer à tona.   

“Sul da fronteira...” é sim uma cativante história de amor, mas não limita seus conflitos a essa fronteira literária. Poderia ser entendida inclusive como uma parábola niilista da fatídica condição do homem em sua peregrinação pelo planeta. E, poderíamos dizer ainda que o título da obra delimita algumas de suas principais alegorias. Por um lado o “Sul da fronteira”, emprestado do nome de uma música de Nat King Cole representa o lugar concreto, um destino definido, um amor preciso e carnal, posto que a canção fala, nada mais e nada menos, do amor por uma mulher que ele quer encontrar no sul da fronteira com os Estados Unidos (México). Por outro lado, o “Oeste do Sol” simboliza a caminhada incansável do homem pela busca de um fim, um sentido luminoso para sua existência. Segundo conta Yukiko, cansados de uma rotina repetitiva e tediosa que se estende por dias intermináveis, principalmente porque as noites nunca chegam, alguns homens e mulheres da Sibéria decidem caminhar sem propósito ao oeste do Sol, perseguindo uma luz infinda, mas a qual não se pode alcançar jamais. Uma luz solar eternamente presente e inatingível ao mesmo tempo. Trata-se, portanto, de uma alegoria sobre a caminhada do ser humano pelas vias iniludíveis e jamais traçadas de sua existência neste mundo, através do qual, em seu total despropósito de sentido, encerra em si o real sentido da vida, pois é, finalmente, graças a essa incansável busca que nos nutrimos de forças para atingir tudo aquilo que nos move. 

Murakami constrói então, a partir da síntese entre o “Sul da fronteira” (como coisa real que cessa) e “o oeste do Sol” (como a busca sem fim do inatingível), o principal argumento de sua obra. Assim, partir a outro lugar com o fim de recomeçar um novo ciclo - dando por morto o vivido - reinventar-se, tonar-se outro, surge refletido na ação de Hajime por diversos momentos no livro. Pode ser visto ainda materializado na passagem em que o cadáver do filho de Shimamoto, um bebê com apenas um dia de vida, tem suas cinzas espalhadas na correnteza de um rio para morrer no mar, renascer ao céu e morrer novamente no mar caindo do alto de uma nuvem em gotas de chuva: “As gotas de chuva batiam mudas na superfície da água, sem que nem mesmo os peixes a percebessem[1]”. Está, da mesma forma, na imagem da águia calva que para acasalar se alimenta de arte e de amanhãs, enquanto que  o abutre se alimenta de cadáveres. Ensina-nos, enfim, que o tempo avança impiedoso e toda oportunidade perdida é uma oportunidade morta, mas que sem prejuízo disso, retorna. Hajime deixa, por mais de uma vez escapar literalmente de suas mãos Shimamoto. O eterno retorno em si é, ao mesmo tempo, a perda sistemática de algo que não retorna jamais.

Para finalizar, retomo as palavras com as quais Fernando Ferrone deu inicio ao encontro que tivemos no círculo de leitura “Conversa com Rita”: “É o livro ‘Sul da Fronteira, oeste do Sol’ um bom livro para entrarmos no universo de Murakami?”. Pergunta certamente retórica cuja resposta pareceria ser óbvia: “sim”.  “Sul da Fronteira, oeste do Sol” é talvez a obra que melhor configura o universo de Murakami, é Murakami por excelência. Quase todas as suas “obsessões” estão presentes: a natação como fuga frenética das angústias da vida; a música cujos interstícios modulam a atmosfera da obra; uma mulher que desaparece; as luzes, os sons, os aromas, enfim, as sinestesias próprias de um bar de Jazz; personagens misteriosos; finais abertos. Ao mesmo tempo, um estilo de escrita que muito lembra a estética realista dos finais do século XIX. Aliás, na passagem onde Hajime escuta South of the Border a sós com Shimamoto, em seus precoces doze anos, descrevendo minuciosamente os movimentos sensuais, mas também distraídos dela, lembra, e muito - salvando é claro, as particularidades do período, o território vinculante e as marcas estilísticas - “A missa do galo” de Machado de Assis. Em uma leitura comparada entre as duas obras percebe-se a minuciosa descrição das ações, a sensualidade em contato com a pureza e o despertar de uma consciência erótica. Quanto ao estilo realista da escrita, talvez a maior diferença entre ambos seja que Murakami utiliza recursos linguísticos e imagens que ultrapassam as ações e os objetos que estão na cena para compor a mimeses com o real, ora porque são imateriais ora porque são sensações internas e subjetivas: “Contemplei distraidamente como seus dedos desentortavam devagar a trama quadriculada de sua saia. Havia algo de misterioso nesse gesto. Como se da ponta de seus dedos brotassem uns fios transparentes que fossem tecendo um novo tempo. [...] Shimamoto ainda estava movendo os dedos por cima da saia. E senti uma dor doce, quase imperceptível, nas entranhas[2]”.

Esse estilo realista do autor (me atreveria a chamar inclusive de hiper-realista essa que é uma característica de autores japoneses das últimas décadas), não está somente nas cores de uma escrita que valoriza o detalhe e a precisão de suas figuras de linguagem para dar consistência a uma descrição que se aproxima milimetricamente do real, mas se instala de maneira cirúrgica no espaço onde o conflito realmente refaz a vida, no interior da cabeça de Hajime. Dessa forma, realidade narrada e experiência vivida se entrelaçam e se tencionam no interior de seu pensamento ao ponto dele mesmo já não distinguir as fronteiras do real e do imaginário. A fiabilidade do narrador está decerto em desiquilíbrio, e nós, leitores, estamos à mercê de suas próprias hesitações.

Seriam diversas as sentenças que poderíamos retirar do livro para ilustrar e dar base às impressões (certamente incompletas e imprecisas) que quis aqui registrar. Há, no entanto, uma passagem que se repete, reverbera com força e define o argumento primordial do livro: “Há muitas maneiras de viver. Há muitas maneiras de morrer. Mas isso não tem nenhuma importância. No fim, somente resta o deserto.” É um livro que dispensa mais comentários, o seu encanto está na particularidade e impressão de cada olhar e por tal precisa ser lido.



[1] Tradução minha.

[2] Tradução minha.



miércoles, 22 de marzo de 2023

Histórias da outra margem – Nagai Kafu


 

Não seria descabido iniciar uma resenha sobre o romance de Nagai Kafu perguntando: Quem é o protagonista de “Histórias da outra margem”? À primeira vista, a resposta pode parecer óbvia, se a história se baseia no romance vivido pelo personagem-narrador Tadasu Oe, será este o protagonista da história que narra. Não obstante, mediante um processo intrincado de metalinguagem, esse protagonista - de quem pouco se sabe, a não ser que ele exerce a labor de escritor, ostentando inclusive certo prestígio - está escrevendo um inacabado manuscrito. Nele, o protagonista de sua história é um professor que abandona à sorte sua esposa e filhos para viver um antigo amor com uma garçonete. Desta vez, tudo pareceria apontar ao protagonista da história dentro da história narrada, ou seja, a esse professor. Existe, no entanto, a figura de Oyuki. Do outro lado da margem está Oyuki, uma prostituta de profissão, mas mais do que isso, é a musa que coloca em movimento, não só a vida do velho escritor, senão aquilo que será talvez o seu último manuscrito. A certa altura, inclusive Nagai Kafu surge, por meio de uma série de referências autobiográficas, na narrativa. De essa forma, funde-se na escrita personagens, narrador, autor, deslocando o foco narrativo de maneira sistemática, mas sem nunca perder de vista os percursos bem delimitados que levam ao outro lado da margem, território onde todos eles de alguma maneira se encontram.

Apesar da simplicidade dos recursos de escrita, a proposta literária de Nagai Kafu traz em si algo de novo para o âmbito literário do Japão da época. Não tanto pelo estilo que coincide em grande medida com a escrita tradicional japonesa, lúcida e luminosa, limando excessos na precisa descrição dos espaços, da natureza e de suas ações climáticas, deixando à luz somente o véu mais transparente da palavra, mas porque traz ao proscênio o bairro de Tamanoi. E é talvez esse o ponto que torna “Histórias da outra margem” uma obra que contribui com uma nova forma de fazer literatura japonesa nesse século. O protagonista não é o herói, o anti-herói ou a musa. O verdadeiro protagonista é tudo aquilo que habita a outra margem, o submundo escuro e sujo de Tóquio, condenado por parte da sociedade tradicional japonesa. Traz em questão um novo estigma para as mulheres que atendem, através de suas janelas precárias, o apetite carnal desses homens, num ato que vulgariza a figura das damas de companhia e as gueixas. O conflito de gerações e a casta moral avançam e são ofuscados pelas luzes de neon ocidentais. Em “Histórias da outra margem” o protagonista é em definitiva Tamanoi, deixando de ser apenas o local geográfico onde o enredo acontece. Pois de repente parece ser o bairro quem toma de assalto à trama e se impõe para enternecer o leitor.

O movimento, portanto, é contrário. A descrição do bairro não passa pelo olhar do narrador que traduz as imagens em palavras, mas são as coordenadas exatas e cruas da paisagem de Tamanoi que cavam no narrador a sua mais pura impressão. É o espaço físico e real quem dita enfim a escrita, e este é sem dúvida um procedimento de escrita ocidental, dos finais do século XIX, emparelhada com os autores do movimento naturalista e que é resgatado por autores como Nagai Kafu.

Outras referências literárias modernas são ainda mais evidentes. Por exemplo, a postura errante e contemplativa do escritor pelas dinâmicas da urbe e sua expressão sobre as coisas mais insignificantes; a modernidade que abruma a sensibilidade artística desse flâneur. Herança dos dândis, retratado posteriormente com maestria por Louis Aragon no livro “Camponês de Paris”, o narrador de “Histórias da outra margem” flana por Tóquio, por sua margem marginalizada, ele é, em uma palavra, um outsider. Mas diferente dos seus antecessores sobre os bulevares parisienses, inclusive diferente dos Beats e o “On de Road” de Keruac e até mesmo diferente do seu conterrâneo Oasamu Dazai em “O declínio de um Homem”, o outsider desta obra, não carrega o martírio de ser impelido ao estranho, de ser lançado ao lado de fora. Se o personagem de Dazai executa a própria vida quando atingido o ponto mais profundo de sua condição de estranho, estrangeiro deste mundo, o mundo de Nagai Kafu flutua, as suas margens são flutuantes como as ondulações de um rio. A intensidade se dissolve na chuva fina. Desta forma, colocar-se do lado de fora o seduz, atravessa o seu espírito inquisidor, não o dilacera, antes é desejado, pois ali está seu ponto de fuga e sua fonte de prazer - Oyuki.

Assim, vestir-se com uma calça puída, tirar o chapéu e calçar tamancos velhos, fazem do personagem um novo personagem. Este se desdobra no professor, protagonista do manuscrito inacabado e que é também o reflexo do próprio Nagai Kafu. Encontram-se todos esses atores com o vento de outono que circula pelas ruas fazendo soar as cortinas de bambus e os pequenos sinos das casas, do lado de lá da margem. Circulam vento, chuva e melancolia pelas flâmulas vermelhas do templo, soprando um resto de vida no peito desses amantes separados por uma nova moral, uma moral moderna talvez. E é na íntima relação disso tudo, no encontro disso tudo com o bairro Tamanoi, que se compõem a história de “Histórias da outra margem”.

Qualquer resenha sobre essa obra estaria incompleta. Aliás, me perguntei se deveria escrevê-la correndo o risco de minimizar em palavras ordinárias as palavras tão precisas e bem garimpadas por Nagai Kafu. Porém, o impulso e o deslumbramento arrebatadores causados ao fim da leitura foram muito mais fortes, pelo qual silenciar-me diante de tamanha beleza seria quase uma violência. Portanto, “Histórias da outra margem” não deveria ser lido como um livro, senão como um lugar que nos introduz às margens escuras de uma realidade alheia e sedutora.



  Primeira Pessoa do Singular – Haruki Murakami   O título do livro “Primeira pessoa do singular” está direta e imediatamente referido à...